Acomodado à mesa do apartamento onde mora, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, o compositor Vagner Cunha tem à frente uma xícara de café e um maço de Marlboro. Um dos cigarros está aceso, entre os dedos.
Conversa com a reportagem atrás de óculos de lentes profundas, que corrigem seis graus de hipermetropia.
- Já assistiu ao filme Janela da Alma? Nele, o Wim Wenders diz que não consegue ficar sem óculos porque é isso que dá o enquadramento do que se vê. Os óculos dão uma visão muito mais seletiva. É algo que sempre pensei. Nunca quis usar lentes de contato porque deixariam meu olhar mais disperso.
Vagner está cercado de imagens. O apartamento é uma microgaleria de arte contemporânea produzida no Rio Grande do Sul. Nas paredes, obras de Lenir de Miranda, Lilian Maus, Nara Amelia, Walmor Corrêa e Fabio Zimbres. Os dois últimos são parceiros de trabalho: o compositor criou músicas inspiradas em obras deles no CD-livro Além, que terá concerto de lançamento nesta terça-feira (20/11), às 21h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Zimbres criou 96 ilustrações para o volume que acompanha o disco. Ele já havia assinado o encarte do disco duplo Mahavidyas, de 2010, balé composto por Cunha e apresentado naquele ano pela Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, com coreografia de Carlota Albuquerque. A regência foi de Antônio Borges-Cunha, uma das figuras mais destacadas na música de concerto no Estado e pai de Vagner.
Na família, ninguém escapou da música. Vagner foi criado em Vacaria, em uma casa onde funcionava a escola do pai. A mãe também ministrava aulas. O irmão mais novo, Moisés Bonella Cunha, é violinista. Mudaram-se para Porto Alegre quando Vagner ainda era criança. Hoje, toca violino, viola, piano e harmônio, instrumento indiano de teclado. Tem graduação e mestrado no Departamento de Música do Instituto de Artes da UFRGS, centro de formação de compositores e instrumentistas que Cunha ajudou a transformar em referência nacional. Muitos talentos saíram de lá; nem todos com a desenvoltura de Vagner. Como é o diálogo com seus pares? Ele desconversa:
- Tenho muitos colegas com quem dialogar, só que não da música. É basicamente com o pessoal das artes visuais e do cinema. É uma questão de afinidade pessoal, em primeiro lugar. Tem a ver com o tipo de churrasco que gostamos de comer (risos). Estou cada vez mais distante do meio musical. Sinto que tenho de me distanciar. É um troço maluco que está acontecendo nos últimos dois anos.
A procura pela beleza
Você pode não conhecer Vagner Cunha, mas provavelmente já ouviu seu trabalho. Ele arranja composições de artistas de música popular como Vitor Ramil - parceiro de longa data - e cria trilhas para filmes. Garante que gosta das atividades, mas não esconde que o interesse principal é compor, um ofício nada popular para alguém que pode ser enquadrado no que se chama de música erudita contemporânea. Vagner, que completará 39 anos na segunda-feira (26/11), é um talento em ascensão. Mahavidyas foi a primeira gravação de um trabalho individual seu. Musicalmente denso, com temas inspirados em figuras do hinduísmo, teve uma complicada gestação de dois anos - a obra seria coreografada por Deborah Colker, que teve de declinar por causa do envolvimento em um projeto para o Cirque du Soleil.
O ano de 2013 será promissor. Em março, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), a mais importante do país e uma das maiores da América Latina, vai estrear seu Concerto para Viola e Orquestra. Ele é um dos sete compositores brasileiros - ao lado de nomes como Marlos Nobre - a quem a Osesp encomendou obras inéditas para a próxima temporada. Entre os próximos projetos está o disco Noturno, em parceria com o pai: Vagner ao piano, e Cunha ao acordeom. A gravação, baseada em improvisos, foi realizada em uma sessão. Ainda haverá gravações complementares. Que tipo de música eles estão criando?
- É um incenso - diz Vagner, e silencia, como se esperasse a reação do repórter. - É uma música que acontece meio sem tempo. Não tem um começo, um meio e um fim tradicionais. Não tem um momento áureo. É realmente o tempo de queimar um incenso. Perfuma o ambiente, e, de repente, o perfume vai embora. Essa é a imagem que tenho do disco.
Vagner avalia que a música de concerto precisa "fazer as pazes com o público". O século 20, ele argumenta, foi de muita experimentação, mas também de uma quebra na comunicação entre compositores e intérpretes, de um lado, e ouvintes, de outro.
- É como na arte contemporânea. Precisamos de uma bula, de um mediador para entrar naquele universo. É uma carga intelectual, às vezes acadêmica, que acho uma chatice. Não é que eu não goste de arte contemporânea, mas acho que tem uma ruptura com o público que é também uma ruptura com a beleza. É isso que eu procuro, a beleza. Isso não significa que eu não soe contemporâneo.
Na música, segundo ele, esse rompimento se deu, pelo menos em parte, com o atonalismo - resumidamente, a maneira de compor que dispensa a organização em tons, maiores ou menores.
- Minha música tem tonalismo e atonalismo. Não posso generalizar, mas as pessoas do meio (musical) te crucificam um pouco por fazer uma música que se comunica com o público. Não me sinto tanto assim porque não convivo muito nesse meio, mas sei que fazer música tonal, na academia, é algo do tipo: "Esse cara é um retrocesso".
Música bonita para Sophia
A grande mudança que separa Mahavidyas (2010) e Além, o CD-livro que será lançado em concerto nesta terça-feira (20/11), no Theatro São Pedro, não está apenas na música, mas também em Sophia, quatro anos de idade. Vagner Cunha afirma que o primeiro trabalho era obra de um compositor. O segundo é de um compositor e pai. Sophia, segundo ele, tem "uma crítica severa" sobre seu trabalho. Gosta muito de algumas composições. Outras considera que são "músicas de bichos malvados".
- Minha filha talvez seja a grande responsável por eu estar fazendo uma música mais leve. Componho muita coisa inconscientemente para ela, talvez pensando no que ela gostaria de escutar.
Sophia é ouvinte das valsas e dos balés de Tchaikovsky, ao som dos quais sai dançando pela casa. Gosta de mostrar para as visitas os troféus Açorianos de Vagner: "Isso meu pai ganhou porque fez música bonita".
É provável que a beleza buscada pelo compositor tenha mais a ver com o mundo de Sophia do que com o tradicional conceito de belo da filosofia da arte. Financiado por meio do Fumproarte, da prefeitura de Porto Alegre, Além registra esse momento. O disco foi gravado por Vagner (que toca diversos instrumentos), Gisele De Santi (voz), Julia Simões (flauta) e Luciano Dal Molin (contrabaixo), com participações de Vitor Ramil, Cuca Medina, Dudu Sperb (vozes) e Antônio Borges-Cunha (acordeom em Ondina).
Em uma primeira audição, é predominantemente misterioso, talvez soturno. Na segunda, sobressaem-se a delicadeza e o intimismo das melodias. As composições duram de três a 18 minutos - algumas delas podem sem classificadas como canção, o que é especialmente claro na música intitulada justamente Canção, sobre poema homônimo de Fernando Pessoa. A inter-relação com as outras linguagens está por todas as partes. Ondina é inspirada em um trabalho do artista plástico Walmor Corrêa. Interior Holandês, em uma obra de Fabio Zimbres. Além, o disco, pode não ser tão acessível quanto o discurso de Vagner faça parecer, mas garante boas recompensas por quem se aventurar por sua complexidade em busca de "música bonita".
ALÉM
> Terça-feira (20/11), às 21h. Duração estimada: 70 minutos.
> Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº), fone (51) 3227-5100, em Porto Alegre.
> Onde estacionar: no estacionamento do Multipalco (entrada pela Riachuelo), a R$ 12.
> Ingressos: entrada franca. Retirada de senhas na bilheteria do teatro (a partir das 13h).
> O concerto: acompanhado de 12 músicos e convidados, Vagner Cunha apresenta o repertório do do CD-livro Além, que estará à venda no local, a R$ 40. Durante a execução da música Saturno, será projetado um vídeo criado por Rodrigo John.