"A beleza, parece-me impossível defini-la, enquanto sinto tão fácil reconhecê-la quando a vejo." (Ivo Pitanguy)
Nunca soube bem o que esta expressão — sinal dos tempos — quer dizer, mas à primeira vista é um libelo de inconformismo, mesmo diante de discursos, promessas ou fatos aceitáveis. Mas como concordar com os padrões que os antecessores chamavam de normais passou a significar sectarismo, todos se sentem pressionados a serem diferentes, porque, afinal, ninguém aceitaria o rótulo de jurássico.
Como a busca da felicidade não faz concessões com o reverso do que consideramos bonito, lógico, inteligente ou empático, ficou mais fácil entender como consequência a depressão, o isolamento e o "cada um por si" que passou a definir uma sociedade marcada pelo narcisismo, a indiferença e a solidão.
Aproveitamos o embalo da virada do século para virar o mundo de cabeça para baixo, fazendo terra arrasada dos preceitos clássicos.
E o ser humano, visto desde sempre como uma entidade gregária, foi sendo desgastado na sua essência e tornou-se um solitário no meio da multidão, testando constantemente sua capacidade de sobreviver desprovido dos valores que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui, e portadores de um status que estávamos habituados a chamar de felicidade, sem exorbitâncias, mas com um saudável padrão de normalidade.
E então aproveitamos o embalo da virada do século para virar o mundo de cabeça para baixo, fazendo terra arrasada dos preceitos clássicos, mergulhando numa nova ordem, com a convicção ou a teimosia de que o desapego dos conceitos, agora rotulados de retrógrados, haveria de garantir-nos um futuro mais realista e autônomo.
Esse estado de "rebeldia" contra o que já estava colocou em xeque todos nossos preceitos fundamentais, a começar pela aparência, com uma legião de inconformados com o próprio corpo, que passou a ser responsabilizado quando, por qualquer razão, as coisas não davam certo. O rosto, tratado como o foco do inconformismo, passou a ser retalhado em busca de uma nova fachada, mais "dinâmica e estética".
Corria-se muitas vezes o risco de que a mudança quebrasse a harmonia, tornando necessário consertar o conserto, mas isso era visto como um preço aceitável, e pretensamente até reforçava, para o mundo exterior, a imagem de uma criatura determinada a ser melhor, não importando que os mais velhos vissem nessa insubordinação nada mais que imaturidade. Inclusive, ignorava-se o risco de que, com o passar da idade, essa irreverência se perpetuasse, a caminho da idiotia.
Com a aparente intenção de mostrar que a imagem original estava defasada, passou-se a pendurar metais no nariz, nos lábios, na língua, nas orelhas, supercílios, umbigo, mamilos e onde mais houvesse estrutura para sustentar o corpo estranho, inclusive lá.
Na fila do café, no aeroporto, um casal de jovens de uma beleza impressionante. Mas isso não lhes pareceu suficiente: ele tatuou tudo o que se via do braço esquerdo com figuras silvestres que davam a impressão de um galho de árvore, bonito, se estivesse na floresta.
A namorada, linda como ela só, com ombros e braços perfeitos, adotou uma tatuagem diferente, representando gotas pendentes e azuladas, na face posterior dos braços bronzeados. Lembravam lágrimas gigantes. Premonição para o arrependimento futuro? Tomara que não. Mas sempre penso que não é justa essa insubordinação contra a natureza, mais ainda quando ela se esmerou tanto para ser perfeita.
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Convite: no dia 3 de novembro (próxima sexta-feira), às 18h, vai ser um grande prazer recebê-los no Pavilhão de Autógrafos da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, para o lançamento do novo livro de crônicas, Se For pra Chorar, que Seja de Emoção.