Desde a virada do século e mais notadamente na última década, oficializou-se uma nova atividade humana, a do ócio raivoso, na qual desfilam os oportunistas desocupados que transformaram as redes sociais em conselhos de sentença onde todos exercem, com espantoso ativismo, uma combinação rara: uma impressionante pobreza de espírito, emoldurando um certificado de mau caráter.
Para que se tenha ideia da iniquidade dessa horda, ela invariavelmente expressa a sua preciosa opinião através das frestas protegidas do manto da invisibilidade. Esse biombo moral lhe dá uma confortável sensação de ser inalcançável, um pré-requisito imprescindível aos covardes, incapazes de qualquer gesto presencial que exija uma ervilha de coragem. Como arautos da certeza crítica, não sofrem com a dúvida. E, poupados da preocupação com a verdade, eles estarão igualmente imunes ao remorso. Esforçando-se para despistar o que são, arvoram-se na condição de influencers para os seus súditos, sempre ávidos da sabedoria gratuita.
Usando o julgamento indiscriminado como hobby, selecionam aleatoriamente suas vítimas e o fazem sem nenhum pudor com o tamanho do estrago que provocam, num denuncismo que, bem apurado, não é mais que uma tentativa mal ensaiada de desviar para olhos distraídos a degradante sensação de pária social que sistematicamente define o delator. Estes tipos desprezíveis vestem a toga da ignorância e da indiferença e fazem desse tribunal a sua recreação preferida, onde descarregam suas mágoas, frustrações, recalques e desencantos. E claro, estarão para sempre poupados do milagre de se tornarem dignos.
Regredimos aos primeiros séculos da idade cristã, quando os romanos lotavam o Coliseu para vibrar selvagemente com os gladiadores trucidados em lutas sangrentas.
Sem empatia, está eliminada a desagradável possibilidade de culpa, última reserva técnica na tentativa vã de emprestar alguma dignidade ao imprestável. Para que uma acusação dessas viralize na mídia, com uma pungência que dispense investigação, nada é mais importante, para manter animada essa massa ignóbil, do que o despudor da pobre fatia da imprensa que um dia muito apropriadamente se chamou de imprensa marrom (por alguma semelhança haverá de ter sido), sempre a chafurdar na lama da desventura alheia.
Os urubus das redes sociais destroçaram a figura humana de Eduardo Guimarães de Melo, um reconhecido cirurgião pediátrico de Teresina, onde exercia com brilhantismo a sua especialidade, no rastro da qual deixou mais de 20 mil famílias agradecidas. Pois, agora, condenou-se o seu elogioso passado à extinção, e o respeitável doutor Eduardo foi denunciado por homicídio culposo, por um acidente cirúrgico, ao qual estão expostos todos os médicos treinados para a moderna medicina invasiva. Como pessoa boa, que todos reconheciam ser, ele não resistiu à crueldade das acusações e ceifou a sua própria vida como só conseguem fazer os perfeccionistas, que não se perdoam da sua falibilidade. E com sua morte prematura ficou o desconforto de que, como sociedade, regredimos aos primeiros séculos da idade cristã, quando os romanos lotavam o Coliseu para vibrar selvagemente com os gladiadores trucidados em lutas sangrentas, para o deleite da elite social daquela época.
Constrange admitir que 2 mil anos depois, neste arremedo de civilização, ainda haja quem aproveite qualquer brecha da fragilidade humana para externar a sua irretocável selvageria. Que essa morte seja creditada à afoiteza irresponsável de julgamento porque, podem crer, os canalhas não se suicidam. Eles não sentem a vergonha que justifique esse gesto extremado, que deixou órfãos dois filhos de um pai que só queria acertar. O tempo todo.
O Eduardo não morreu sozinho, ele arrastou na sua imensa tristeza a dor que cada médico de verdade sente quando não consegue evitar que uma criança morra.