A intenção não é simplesmente se queixar, é antes entender o que mudou na concepção de que cuidar da saúde dos outros não é uma tarefa banal. E se todos ainda concordam que o cuidado da própria saúde é proteger o nosso bem maior.
Por que, de repente, parece tolerável para pessoas em cargos de decisão que só alguns tenham direito ao melhor atendimento médico possível?
Porque é essa a ideia explicitada pelos legisladores de ocasião, ao proporem a liberação de escolas médicas a granel, desde que eles possam selecionar, cuidadosamente, quem deva proteger a sua própria saúde e a dos seus amados.
Sugeriram que enfermeiras com mais de 10 anos de profissão prestassem o Revalida, para exercer a medicina.
Minha tendência será sempre sugerir que esses demagogos que usam critérios tão egoístas quando se trata de quem cuida de si ou dos outros pensem como selecionariam os médicos para tratar dos seus filhos ou, no máximo de preocupação com qualidade, dos seus netos. E ajam empaticamente de acordo com suas desgastadas consciências.
Quando pensamos que já tínhamos alcançado o limite da estupidez nas sugestões de como resolver o problema da saúde pública brasileira, eis que aparece um tipo que aproveitando o privilégio de ocupar uma mesa de discussão no Senado (claro que por culpa de quem convocou) animou-se a oferecer, com ar de inteligência, a luminosa ideia de que as enfermeiras com mais de 10 anos de profissão prestassem o Revalida, e com isso, pudessem exercer a medicina. E para sacramentar a proposta como idiota, a proposição foi seguida do clássico "e por que, não?", típico de quem está convencido do brilhantismo da sua sugestão.
Na mesma linha da improvisação irresponsável, a Universidade Federal da Bahia, que tem no curso de Medicina o mais concorrido, contando com 1.015 alunos, metade dos quais são cotistas que precisam trabalhar para se sustentar, ao invés de oferecer uma bolsa para manutenção dos alunos carentes, resolveu dar uma "enxugada" no currículo sacando-lhe 1,5 mil horas de atividade docente, na presunção de que este conteúdo seja supérfluo e que ninguém será prejudicado no futuro pelas informações omitidas pelas decisões burocráticas.
O que se percebe é que a progressão acelerada em direção ao desvario é um fato deste século em que alguns valores foram modificados, não por requinte civilizatório, mas por evidente descaso com o sofrimento do outro. Neste contexto, a banalização da morte experimentou uma assustadora naturalidade por conta das milhares de perdas anunciadas à exaustão nos anos recentes de pandemia. Não há nenhuma dúvida de que a condição anímica da população em relação à ameaça de morte, inclusive por parte da imprensa, sofreu uma espécie do entorpecimento, que repercute, por exemplo, nas campanhas de doação de órgãos. O impacto do anúncio de que 66 mil brasileiros dependem de doação de órgãos para continuarem vivos já não gera o mesmo grau de comoção.
Mas nada disso justifica o que povo pobre se submeta à humilhação de ser tratado por simulacros médicos, porque alguém, demagogicamente, decidiu usar a vulnerabilidade de quem adoece como uma barganha covarde em favor de quem não tem o menor senso de humanismo.
Imagine se alguém anunciasse, em nome da redução do custo para que mais pessoas pudessem viajar de avião, que uma determinada companhia está usando pilotos amadores. Então fica fácil a conotação: uma doença mal conduzida, pode sim, ser a última viagem.