Na saída tumultuada de um cursinho pré-vestibular, um diálogo desconcertante. Uma jovem confessou à amiga: "Tenho que tentar medicina, mas como tu, eu gosto mesmo é de jornalismo".
Mas em nome do quê alguém tem que tentar algo que certamente não lhe dará prazer? O primeiro desafio na busca da realização individual é a escolha da trilha de acesso, porque, ainda que existam muitas vias oferecidas, no fim do labirinto de alternativas só têm duas saídas para a completude pessoal: o amor e o trabalho.
Se não bastasse a escassez de alternativas e a dificuldade de mudar de rumo diante da percepção do equívoco na escolha inicial, pois raros têm a coragem de chutar o balde e começar de novo, ainda há sobressaltos pelo caminho exigentes de coragem, determinação, persistência, uma certa dose de teimosia e, como em tudo, uma pitada de sorte.
A busca de melhores condições profissionais teve desde sempre a preocupação de conjugar a necessidade de trabalhar para sobreviver com a preservação da dignidade, idealmente garantido pela autonomia de escolher onde o trabalho lhe desse o prazer básico no fomento da felicidade.
O trabalho deixou de ser uma penitência por algum pecado cometido, o que teria se iniciado com Adão expulso do Paraíso, porque o desocupado resolveu comer o raio da maçã (com tanta coisa disponível) que nem precisava mastigar. A partir daí, sem a bolsa celestial, ter que trabalhar para ganhar o alimento com o próprio suor foi um duro castigo, felizmente atenuado pela obrigação de carregar consigo a maravilhosa cúmplice, e ao vê-la desfilar na saída do Éden, linda e seminua, ninguém imaginaria o quanto ela se interessaria no futuro por um desfile de moda.
Mesmo que ela tenha demorado milênios para compartilhar o ganha-pão, tê-la por perto para ouvir, de olhos fechados, a Aracy Balabanian lendo uma crônica da Clarice Lispector, ou sacudir a cabeça afirmativamente quando você diz o que pensa do governo, sem risco de ser denunciado, já valeu muito a pena.
Ao longo dos séculos, o significado do trabalho foi se modificando, desde a abominável escravidão que misturava na mesma criatura a humilhante sujeição silenciosa com o ódio sem tréguas a quem a impunha, revelando-se uma incomparável trituradora da autoestima da sua vítima, e se arrastou até o sonho de liberdade que chegou com a Revolução Francesa, quebrando conceitos antigos e abrindo caminho para uma nova sociedade. Esta transformação foi sacramentada pela Revolução Industrial, que é a fase em que nasce, mesmo que de maneira tímida, o direito do trabalho.
A busca de melhores condições profissionais teve desde sempre a preocupação de conjugar a necessidade de trabalhar para sobreviver com a preservação da dignidade, idealmente garantido pela autonomia de escolher onde o trabalho lhe desse o prazer básico no fomento da felicidade, essa que muita gente nem imagina que exista, mas que dá ao felizardo a rara alegria de sentir-se em férias trabalhando.
O mais poderoso determinante da infelicidade é que muita gente não gosta do trabalho que escolheu ou lhe foi imposto por circunstâncias. Seja pelo tipo de tarefa ou pela necessidade de interagir com tipos desagradáveis (na dificuldade de visualizar este modelo, imagine o agente penitenciário), ou alguma outra forma de corruptela comportamental, como, por exemplo, parecer sempre animado para aparentar boa vontade. Neste caso, meu modelo é o funcionário da empresa aérea que trabalha no setor de bagagens extraviadas, onde nunca ninguém entra para agradecer.
Fiquei com vontade de convidar a moça do início desta crônica para um café. Ela certamente não tem a menor ideia de como a medicina é exigente. Se ela tivesse tempo de ouvir, eu diria do quanto é difícil conviver com a frustração de expectativas, a transferência da culpa de familiares relapsos, a sensação de impotência diante da saúde pública excludente e cruel, a desigualdade social, a falsidade dos discursos oficiais e a implacabilidade da morte. Se ela fantasiasse que essa escolha lhe abriria a porta para uma profissão charmosa e lucrativa, recomendaria que fosse fazer outra coisa. Qualquer coisa, para fugir da frustração de se transformar, na velhice, numa colecionadora de ressentimentos.
Mas insistiria que "se você é do tipo que se encanta em ajudar os outros, e fica feliz quando pode dar a uma pessoa que lhe procure em busca ajuda uma alegria que ela não conheceria se você não existisse, bem-vinda ao barco, este lugar foi feito para você. E com uma oferta adicional: por esse caminho encantado, é possível que, ao longo da vida, você acabe acumulando, sem perceber, uma coleção de histórias que encantarão às suas amigas jornalistas".