No meio de uma apresentação empolgada, sob a euforia produzida pelo círculo virtuoso desencadeado por uma relação médico/paciente afetuosa, alguém jogou água fria, com balde e tudo, com um comentário inesperado: "Nem sempre o médico está disposto a tolerar os chatos que marcam consulta para derramar num estranho as queixas que seus amigos e familiares não têm mais paciência para ouvir".
Uma ponderação absolutamente pertinente, sendo o médico um ser humano convencional, exposto aos bons e maus momentos da vida, e que muitas vezes tem que sublimar as suas próprias mazelas para ouvir as do outro, marcado pela infelicidade, sempre de tocaia, na sombra da solidão. Seria um exagero atribuir todas as doenças à falta de relações pessoais sólidas, mas não há nenhuma dúvida de que os solitários envelhecem mais precocemente, perdem a capacidade cognitiva mais cedo, adoecem mais. E quando isso acontece, sofrem muito, porque a doença agrava a tragédia de não ter com quem compartilhar.
A experiência médica ensina que, excetuados os chatos congênitos, a grande maioria dos incômodos desnecessários da relação médico/paciente advém de um misto quente de infelicidade e irritação de quem sentou do outro lado da mesa, pleno do ódio total indefinido. É aquele que enche a sala de espera e mira imediatamente na secretária sorridente quando ela, construindo a ficha, pergunta:"Qual é o número do seu celular?".
— E porque você quer saber, se ninguém me liga?
Por mais que se ensine em seminários de relação médico/paciente que temos de ser tolerantes com quem sofre, só a experiência nos ensinará que a intolerância e a revolta fazem parte da doença.
Um inexperiente pode concluir que se trata de falta de educação, mas é muito mais do que isso. Um mal educado feliz nunca daria esta resposta, enquanto o amargurado aproveita todas as brechas para derramar o seu contêiner de tristeza. E a potência do seu míssil de desafeto aumenta muito se, por trás de tudo, houver uma dor crônica. Quem já tenha passado um dia inteiro com dor, qualquer dor, será mais tolerante a todas as queixas paralelas.
Muitas vezes o crachá de identificação deste tipo de inconveniente é apresentado ao médico no final de uma tarde de casos complexos, quando ele, já cansado, o recebe com a derradeira reserva de sorriso engatilhada e, ao lhe perguntar "Como vai, tudo bem?", o outro dispara o canhão:
— Se eu estivesse bem, não estaria aqui!
Diante dessas reações intempestivas, cada médico reagirá do único jeito que lhe pertence: o seu. Aliás, esse não é momento para improvisações. O que se pode discutir são as estratégias de desarmamento. Então lá vão três sugestões para os médicos jovens (os veteranos já descobriram as suas, e deveriam sim trazer suas contribuições, porque estamos todos ávidos de aprender):
— O que o Sr. acha que eu posso fazer para lhe ajudar a reduzir esta raiva que lhe atormenta tanto? (não se surpreendam se isso desencadear uma crise de choro)
— Por favor, proponha um roteiro de conversa capaz de fazer com que saiamos daqui com a certeza de que o nosso encontro valeu a pena.
— Quando o Sr. se acalmar, perceberá que não é nada inteligente tratar mal quem poderá lhe ajudar.
Por mais que se ensine em seminários de relação médico/paciente que temos de ser tolerantes com quem sofre, só a experiência nos ensinará que a intolerância e a revolta fazem parte da doença, e então temos que sublimá-las com delicadeza, paciência e parceria.
Mesmo quando pareça claro que o infeliz veio determinado a descobrir os nossos limites.