“Nossos acordos são temporários, passageiros, válidos apenas até novo aviso.”
(Zygmunt Bauman)
Pense um pouco antes de responder. Abstraia episódios recentes. Mas não faça concessões. Limite-se ao que você acredita. Se tiver alguma dúvida, eleja como rejeitáveis as memórias que, ao serem recapituladas, provocam algum desconforto, mesmo sem o exagero da náusea.
O nosso querido Ivan Izquierdo chamou atenção para as evidências de que as imagens desagradáveis ficam definitivamente arquivadas em escaninhos cerebrais, de onde são resgatadas face a estímulos pertinentes às emoções vividas, mesmo que, conscientemente, preferíssemos esquecê-las. Em resumo, nem todas as vivências ruins podem ser varridas para baixo o tapete da memória, apenas porque circunstancialmente as consideramos inoportunas.
Claro que a vida em sociedade seria muito mais fácil se nosso cérebro não fosse tão implacável e permitisse que, diante de experiências desagradáveis, pudéssemos mandá-las para a lixeira da memória, com o recurso adicional de podermos, de tempos em tempos, esvaziá-la definitivamente.
Como nada disso é possível, resta-nos o desconforto da hipocrisia descarada e do convívio amistoso sobre as areias movediças da falsidade e da conveniência abjeta, sempre marcado pela ameaça tangível da traição, porque afinal quase nada se mantém conveniente por tempo indeterminado.
Se esse cenário já é escabroso no meio universitário ou empresarial, imagine-se no mundo político, onde, entre os bem-intencionados (e eles existem, sim), circula uma reconhecida concentração de ambiciosos, desprovidos de escrúpulos. Como saber se a causa que o companheiro momentaneamente diz que apoia é, de fato, a que ele seguirá apoiando se o tipo nunca teve a menor dificuldade em mudar de opinião?
Fui criado numa família em que conviviam “a gente do dr. Getúlio” com “os tipos do PSD”. As opiniões, mesmo entre os aparentados, eram divergentes, mas respeitosas. Um único episódio adverso marcou a minha memória política infantil: um tio avô, ao final de mandato como vice-prefeito, foi desbancado da pretensão de concorrer a prefeito e, irritado, candidatou-se a vereador pela oposição. Conseguiu alguns poucos votos de familiares apolíticos. Tinha sido punido pela mudança de lado, com o rótulo de malacara, uma expressão que os gaúchos conhecem bem. Nunca mais concorreu a nada, porque, mesmo tendo dado um tempo, ninguém esqueceu.
Não havendo nenhuma evidência de que a modernidade tenha atrofiado nossa capacidade memorial de indignação, e, com todas as declarações registradas em detalhes, precisaremos buscar alguma explicação para a naturalidade com que as acusações, não podendo ser negadas, são absorvidas, ainda que pareça impossível que tenham sido perdoadas. Até porque, no cúmulo da tolerância e generosidade, ainda prevalecerá a máxima de John Kennedy: “Perdoe seus inimigos, mas não esqueça seus nomes”.
Neste mundo, que Zygmunt Bauman chamou de líquido, porque quase nada tem forma ou consistência, ainda há um agravante: a disponibilidade de vídeos registrando os discursos inflamados, que juraríamos terem sido sinceros, tamanha a veemência. Ou aqueles eram os falsos? Não consigo deixar de pensar no que devem sentir esses parceiros de ocasião, agora abraçados a antigos desafetos, enquanto escorre pela cara o suor profuso da empolgação, que empapa a camisa, mas não lava a alma.