O pediatra, ainda que seja obrigado a conviver com a coisa mais incompreensível na infância, a doença, tem como compensação a chance de desfrutar da interação com a alma humana na sua expressão mais pura, aquela que antecede a perda a inocência.
É a fase em que ainda não descobrimos a espessura da carapaça de hipocrisia que precisaremos vestir na luta pela sobrevivência no mundo dos amadurecidos.
A roda dos pequenos discutia o bom que é ter avó, quando a Duda perguntou para a Fer onde morava a avó dela.
– Mora com a gente, por quê?
– Porque a minha mora no aeroporto.
Então, quando ficamos com muita saudade, a gente busca ela lá. Mas uns dois domingos depois já temos que devolver. Eu nem sei porque ela gosta tanto do aeroporto!
Nada mais injusto que essa inocência, um dia, termine.
Mas o ser humano, apesar de ser o mais lento do reino animal na descoberta dos instrumentos de sobrevivência, já exibe precocemente alguns indícios que configurarão, ainda na primeira década, seu arsenal defensivo, que muitas vezes se revela em situações de desamparo pela ausência do olhar protetor dos pais.
Encanta também que algumas crianças, provavelmente mais atiladas pela estimulação precoce intensa, tenham atitudes que revelem independência e indignação, sugerindo que o instinto de autopreservação faz parte da nossa concepção original e que usá-lo mais cedo, ou não, dependerá das circunstâncias.
Foi essa sensação que tive ao conhecer a Sandrinha, um pingo de gente de quatro aninhos que soube instintivamente marcar seu território quando se sentiu invadida no recanto que era seu.
Curtindo as férias na praia e com a internet temporariamente interrompida no meu apartamento, desci para usar o wi-fi do restaurante no térreo. Como era horário de almoço e praticamente todas as mesas estavam ocupadas, percebi que o recanto destinado aos filhotes era o único circunstancialmente vazio.
Sentei-me lá com o laptop no colo, coloquei a senha e mandei para o jornal a crônica daquele final de semana. Enquanto estava nessa operação, Sandrinha apareceu com sua bochecha redonda e seu dedinho gordo, tocou meu joelho esquerdo distraído e pediu com autoridade:
– Me dá o dinossauro!
Eu nem tinha percebido que quase sentara em cima. E ela não perdoou:
– Você não sabe que este lugar é das crianças?
Pedi desculpas, desliguei o laptop, coloquei-lhe a capa e, quando me levantei para sair, ela perguntou:
– Já vai embora?
Ao me ver saindo, ela aparentemente já não me achava mais tão intruso:
– Se quiser ficar mais um pouco pode.
E entendeu o bracinho me devolvendo o dinossauro amarelo com sua bocarra verde.
– E pode ficar com este, se quiser. Não gosto nada dele.
Triste pensar que logo adiante tudo isso se dissipará em nome da maturidade.