É difícil achar no Brasil uma prova tão flagrante da vontade popular quanto a decisão do Congresso sobre o marco temporal. A Câmara dos Deputados aprovou por 283 votos a 155, em maio, uma lei estabelecendo que só poderão ser demarcadas as terras ocupadas pelos índios até 1988, quando entrou em vigor a atual Constituição. Agora o Senado, por 43 votos a 21, deu a sua aprovação ao projeto, completando o processo legal para que uma lei seja criada. Se o Brasil fosse uma democracia, e se o poder de fazer leis viesse do povo, através dos seus representantes eleitos, estaria resolvido. Mas o Supremo Tribunal Federal, por nove votos a dois, acha que o marco temporal não vale – no seu entender, é contrário à Constituição. De um lado, há o voto de 326 parlamentares eleitos pela população brasileira. De outro, há o voto de nove magistrados que não passaram por nenhuma eleição. A vontade dos nove vale mais do que a vontade dos 326.
Os ministros querem uma coisa e os cidadãos querem o contrário
A lei que o Congresso aprovou vai ser vetada pelo presidente Lula, como é seu direito legal, e esse seu veto poderá ser rejeitado pelos parlamentares. O problema é que nem Lula nem o Congresso valem nada nessa questão; o STF vai continuar considerando a lei do marco temporal ilegal. Na democracia brasileira existe isso – a lei ilegal. Uma decisão tomada pela Câmara e pelo Senado juntos vale menos que uma decisão de assembleia de condomínio.
O governo Lula sofreu a sua pior derrota parlamentar desde que assumiu suas funções – é óbvio que queria a rejeição da lei, ou que ela não fosse votada nunca. Mas a “maioria” da “base aliada”, adquirida com a compra de lotes do “centrão”, não funcionou. O resultado é o marco temporal – e um pacote de outras questões que agora podem ser resolvidas não como o governo quer, e sim como quer a maioria dos deputados e senadores. Mas a questão central não é a disputa de votos entre governo e oposição. É a evidência gritante do abismo que se formou entre as crenças do STF e a vontade da maioria dos brasileiros. Os ministros querem uma coisa e os cidadãos querem o contrário.
Não vale dizer, como a esquerda faz, que o Congresso é ruralista, fascista, direitista, e que por isso não “teria o direito” de decidir nada. O que interessa é que esse Congresso é o único que o Brasil tem, e o único que foi eleito pelos brasileiros – não foi importado da Suécia, e não vem de nenhum planeta “woke” que está na imaginação do STF. Os nove ministros, e o sistema que lhes dá apoio, vão ter de conviver com os representantes desses 200 milhões que tanto os irritam, não pensam como deveriam e não se adaptam ao Brasil desenhado pelo Supremo.