Meu pai era alcoólatra.
Agora, se você acha que estamos prestes a mergulhar nas memórias do subterrâneo de Dostoiévski e seguir trôpegos rumo ao velho e ao bar de Hemingway, ou que vamos percorrer as sarjetas sórdidas de O Farrapo Humano, filmaço de Billy Wilder (1945), cantarolando O Ébrio (1946), de Vicente Celestino, ah, então você pegou a barca errada. A coisa aqui está mais para Bukowski ou, vá lá, Zeca Pagodinho, embora meu velho nunca tenha sido chegado numa ceva – acho que ele achava loiras geladas coisa de amador. E o coroa era profissional: bebia como um atleta. Atleta de fundo, claro. Um medalhista em halterocopismo.
Como você deve saber, neste mundo politicamente correto já não se diz mais alcoólatra: o "certo" agora é alcoolista. Certo para a maioria. Errado para meu pai. Afinal, se a palavra alcoólatra é, como a etimologia determina, "aquele que adora o álcool", estamos diante do caso certo. Meu progenitor era fiel discípulo de Baco – embora vinho também não fosse seu prato favorito. Ele gostava mesmo de uísque, de vodca e de gim. Em doses colossais.
Ou seja, um perito, um expert, um conhecedor – tenaz e perseverante.
Mas meu pai nunca encheu o saco de ninguém – sem ser o da minha mãe, claro. Nunca deu vexame, nunca vomitou (pelo menos não em público), nunca fez discursos incompreensíveis e intermináveis (embora por vezes recitasse uns poemas). Ele não bebia para esquecer – até porque lembrava de tudo. Ele não bebia para afogar as mágoas – as dele nadavam muito bem. Aliás, acho que meu pai nem bebia: "Quem bebe é o Araújo", dizia ele. Minha mãe rebatia: "O coitado tem um encosto e nem sabe...". Se era um encosto, o Araújo deu muito apoio para meu pai. Mas nunca conheci o Araújo.
Nem o Ateneu.
Ouvi falar do Ateneu quando tinha 12 anos. Minha mãe estava viajando e, quando levantei, às 7h, para ir para o Anchieta, dei de cara com meu pai chegando em casa: "Onde tu tava até esta hora, pai?". Ele me olhou com triste ternura, pensou um pouco e respondeu: "No enterro do Ateneu, meu filho". Fiz cara de espanto, então ele explicou:
"Ah, era um amigo de infância, lá de Muçum. Coitado, morreu feito um passarinho...".
Não estou usando este nobre espaço para defender o álcool – até porque prefiro ervas naturais. Sei de quantas vidas, famílias, reputações e empregos o álcool já afogou, e afoga – no Brasil e alhures. Só estou querendo dizer que nem todos os casos de alcoolismo são iguais e que existem algumas pessoas mais equipadas do que outras para percorrer o caminho dos excessos em busca do palácio da sabedoria. Não que meu pai tenha chegado lá – mas que tentou, tentou. Até morrer, dormindo, aos 80 anos. Feito um passarinho.
Mas quer saber? Se vivo fosse e tivesse que votar nas eleições de outubro, não sei o que o velho Milton faria. Mas suspeito que iria com o Araújo no enterro do Ateneu.
Ainda bem que agora já tenho idade para acompanhá-los.