Fui médico dos primeiros doentes com aids em São Paulo. Quem não viveu aqueles dias, não pode imaginar como eram.
Os pacientes contraíam um vírus que anos mais tarde provocaria infecções oportunistas em série e alguns tipos de câncer de evolução inexorável. A morte chegava depois de um longo sofrimento, não era raro o paciente considerá-la bem-vinda.
Então, em 1995, surgiram associações de antivirais capazes de controlar a doença. Foi uma revolução. Na minha clínica e na enfermaria do Carandiru vi doentes em pele e osso na fase terminal da aids levantar da cama e voltar à vida normal. A maioria está viva até hoje.
Naquele tempo, os medicamentos provocavam muitos efeitos colaterais, além de exigir a administração de comprimidos em horários desencontrados. Havia casos em que eram prescritos mais de 20 comprimidos diários.
Nos anos seguintes os avanços científicos simplificaram esses esquemas. Hoje, é possível controlar a infecção pelo HIV tomando apenas um comprimido por dia, com efeitos colaterais mínimos.
Em dezembro de 2010, um estudo internacional com a participação de cientistas brasileiros demonstrou que o medicamento Truvada, uma associação de dois antivirais (emtrecitabina + tenofovir) administrados diariamente, reduzia em 95% o risco de infecção pelo HIV naqueles que tomavam os comprimidos com regularidade. Entramos na era da Prep (profilaxia pré-exposição).
Em cidades como Nova York e San Francisco, em que essa estratégia ganhou impulso, houve diminuição expressiva do número de novas infeções pelo HIV. O mesmo aconteceu nos grupos com comportamento de risco estudados em São Paulo e em algumas localidades da África.
A eficácia da profilaxia, no entanto, esbarrou numa velha dificuldade: a adesão ao tratamento. A avaliação revelou que a proteção cai à medida que o número de comprimidos tomados na semana diminui, e que desaparece quando o medicamento é interrompido.
A experiência com a hipertensão arterial, com o diabetes e outras condições crônicas que requerem tratamento contínuo mostra como é frustrante convencer pessoas assintomáticas a tomar remédio todos os dias, durante meses ou anos consecutivos. Quando o comportamento sexual está envolvido a dificuldade é ainda maior.
Um ensaio clínico internacional publicado agora no The New England Journal of Medicina, causará uma nova revolução no campo da prevenção à aids.
O estudo foi conduzido entre 5.338 meninas adolescentes e adultas jovens de Uganda e da África do Sul. Os resultados não poderiam ser mais impressionantes: o antiviral lenacapavir foi capaz de impedir 100% das transmissões do HIV nas 2.134 participantes que receberam uma injeção subcutânea desse medicamento a cada 26 semanas.
Quer dizer que duas injeções de lenacapavir por ano bloqueiam a transmissão do HIV, independentemente do comportamento sexual? Provavelmente, sim, embora ainda não tenhamos dados definitivos que permitam conclusão tão abrangente.
Seria, então, possível livrar as novas gerações da infecção pelo HIV, se todos tomassem lenacapavir duas vezes por ano? Teoricamente, sim. Na prática, porém, a teoria é outra. Há problemas que precisam ser resolvidos.
Primeiro e o mais importante: a Gilead – multinacional que desenvolveu a droga – vai lançá-la no mercado a preços inacessíveis às populações dos países mais pobres, justamente as que convivem com os maiores índices de disseminação do vírus. Segundo: os efeitos colaterais mais importantes do lenacapavir ficaram limitados à formação de nódulos inflamatórios no local das injeções, que regrediram espontaneamente. Apenas em quatro das 2.134 participantes as injeções precisaram ser suspensas, devido à intensidade dessas reações. Como a experiência com essa droga é recente, não há como saber se surgirão efeitos indesejáveis a longo prazo.
Em função desses resultados, o que deverá ser feito? Administrar a lenacapavir para todos a partir do início da vida sexual? Não seria razoável nem economicamente inviável. Mas podemos limitá-la às populações que correm mais risco: homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e pessoas com depressão imunológica. Se conseguirmos eliminar a transmissão nesses grupos, vai valer o investimento, mudaremos a história da aids no Brasil.