O sanitarista e epidemiologista Draurio Barreira assumiu o Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) do Ministério da Saúde com o objetivo de mudar a política adotada no governo Jair Bolsonaro. Para isso, até a denominação Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, adotada na gestão anterior, foi aposentada: as siglas HIV e aids retornaram com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
Draurio, 61 anos, tem pós-graduações em Saúde Coletiva e Epidemiologia e foi o primeiro gerente do Programa de DST/aids do município do Rio de Janeiro na década de 1990, além de chefe da Unidade de Vigilância Epidemiológica do antigo Programa Nacional de DST/aids, do Ministério da Saúde, e coordenador do Programa Nacional de Controle da Tuberculose. De 2015 até janeiro deste ano, atuou como técnico sênior de tuberculose da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, na Suíça.
Os números da aids são especialmente preocupantes em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Conforme os dados apresentados pelo Ministério da Saúde em dezembro, quando se celebra o Dia Mundial Contra a Aids, o RS apareceu em quarto lugar no ranking dos Estados com mais casos confirmados de HIV em 2021. Entre as capitais, Porto Alegre teve o pior índice relacionado a mortes, com 22,6 óbitos por 100 mil habitantes, cinco vezes maior do que o coeficiente nacional.
Por que deixar a OMS e voltar para trabalhar no Brasil?
Principalmente por acreditar que é um momento de reconstrução. O lema do governo, “União e Reconstrução”, faz total sentido. Mesmo antes de assumir o cargo, o presidente Lula já conseguiu aprovar PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de transição que garante a transferência de renda para as pessoas em situação de pobreza. E, no caso das doenças sob responsabilidade do departamento, há uma conexão muito forte com os determinantes sociais. O HIV/aids é uma doença que afeta principalmente populações mais pobres e vulneráveis, pessoas privadas de liberdade, a população negra e a população indígena. A tuberculose é uma doença da pobreza. A hepatite viral não é diferente, e as ISTs, em geral, são doenças influenciadas por determinantes sociais: são os mais vulneráveis os mais afetados. É um alinhamento raro em relação a políticas públicas de diferentes setores. Não é mais uma política sanitária, mas de governo.
Como foi seu contato com o novo governo?
Venho participando desde a eleição do presidente Lula e, depois, com a equipe de transição. Trabalhei com nove ministros da Saúde no tempo em que estive no Ministério da Saúde (antes de ir para o Exterior), e quatro deles faziam parte da transição. Então, mantive contato, fiz sugestões sobre o que eu achava que seria importante ser retomado no departamento. De tanto comentar e me fazer presente no processo, fui lembrado no momento da indicação para diretor.
Como foram os últimos anos no departamento que o senhor assumiu?
Trabalhei no departamento HIV/aids nos “tempos áureos”, da década de 1990 até 2015, quando o Brasil ganhou reconhecimento internacional por ser um dos pioneiros na luta contra o HIV/aids, por ter incluído a sociedade civil como parte fundamental da resposta nacional articulada, com todos os setores. A partir de 2015, vimos o desmantelamento desse processo, especialmente nos últimos quatro anos, quando a participação da sociedade civil foi totalmente neutralizada, silenciada. O Brasil, que estava na primeira fila de qualquer evento que tratasse dessas doenças, agora faz parte da multidão lá atrás, porque não tem protagonismo nenhum. Pelo contrário: estamos sendo esquecidos devido à falta de qualquer intervenção eficaz, qualquer política pública arrojada, e a qualquer investimento significativo. O objetivo é retomar o protagonismo do Brasil.
O HIV/aids é uma doença que afeta principalmente populações mais pobres, pessoas privadas de liberdade, a população negra e a população indígena. A tuberculose é uma doença da pobreza. A hepatite viral não é diferente, e as ISTs, em geral, são doenças influenciadas por determinantes sociais: são os mais vulneráveis os mais afetados."
DRAURIO BARREIRA
O que fez o departamento perder o protagonismo?
A mudança começou pelo nome: era Departamento de DST, HIV/aids e Hepatites Virais até o governo Michel Temer. No governo Bolsonaro, mudou para Departamento de Doenças Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Desaparece, então, o nome HIV/aids, e generaliza tudo em “doenças crônicas”, mas doenças crônicas existem centenas. Então, você torna invisível a questão do HIV/aids. Por quê? Porque são as populações de minorias que desaparecem dessa discussão: pessoas do movimento LGBTQIA+, indígenas, a população empobrecida, a população negra. O processo de apagar as minorias sempre foi a tônica do governo passado desde sua posse. As minorias “desaparecem” e, por consequência, perdem financiamento e as ações que se refletem em benefício delas. Essa é a principal razão para a decadência interna e externa do departamento, apesar de toda a resistência de seus técnicos que permaneceram trabalhando durante o governo Bolsonaro. Queremos dar, de novo, visibilidade às pessoas mais vulneráveis.
Que tipos de cortes foram feitos para 2023?
No ano passado, os gastos obrigatórios (medicamentos para tratamento das doenças) foram preservados porque não tem muito que fazer, são despesas obrigatórias. Mas as despesas discricionárias, que são as que definimos onde serão gastos (parte dos recursos) e quais serão as prioridades tiveram corte de 61%. Então, por exemplo, qualquer ação que queiramos fazer para prevenir o HIV, controlar a tuberculose, qualquer ação que não seja parte das despesas obrigatórias, teremos que considerar o corte de 61% em comparação com 2022. Imagine fazer o enfrentamento da aids, tuberculose, hepatite ou das infecções sexualmente transmissíveis com 39% do orçamento...
Há alguma previsão de aumento nos recursos do departamento? O que foi informado ao senhor?
O que foi prometido foi a recomposição do orçamento. Este é o compromisso do governo: de que a Saúde não teria cortes nesta gestão. Então, além da recomposição do orçamento, esperamos ter parcerias, não somente que financiam, mas que deem apoio técnico e político às novas políticas sanitárias. Às vezes, não é só questão de financiamento, mas de apoio para que essas ações sejam implementadas.
Como seriam essas parcerias?
Qualquer gestor sabe que ter credibilidade é fundamental. Se você não tem isso, é mais difícil conseguir recursos, porque ninguém vai colocar dinheiro em um departamento, um ministério ou um governo que não têm credibilidade. Conforme você reverter essa expectativa, as parcerias surgem de forma mais fácil. Para dar exemplos: apenas com a eleição do presidente Lula, a Noruega prometeu ativar o Fundo Amazônia; e eles são os maiores contribuintes. A Alemanha prometeu US$ 1 bilhão para a gestão do governo Lula na questão de defesa do meio ambiente. Os créditos começam a aparecer à medida que há credibilidade e que os parceiros acreditam que esse dinheiro será bem investido.
Quero transformar em política de governo as políticas sanitárias que ficam circunscritas ao SUS. Eliminar a aids e a tuberculose é algo que não será alcançado se for através de uma política apenas biomédica e sanitária."
DRAURIO BARREIRA
Quais serão as suas prioridades do seu trabalho à frente do departamento?
São dois aspectos. O primeiro é a urgência das pessoas que já estão afetadas por qualquer uma dessas doenças. Não se pode faltar insumos, testes, nada que dê suporte às pessoas que vivem com HIV, com tuberculose, com sífilis, com hepatite. Então, isso é o que chamamos de gasto obrigatório. Isso tem que ser garantido porque as pessoas doentes têm urgência. Não adianta fazer um plano de seis meses ou de um ano, porque as pessoas têm tuberculose hoje, têm hepatite hoje, têm HIV hoje. O segundo é a prevenção. Alguns brasileiros ainda estão morrendo todos os dias com covid-19. Já temos menos mortes, a marca já passou de 3 mil. Essa redução de óbitos ocorreu graças a duas intervenções: testes rápidos amplamente disponíveis e prevenção por vacina. Quando digo que vou priorizar prevenção e diagnóstico, pode parecer que não estou dando tanta atenção ao tratamento. Não é isso. Para todas as doenças om as quais trabalhamos no departamento há testes e ferramentas de prevenção, mas não estão disponíveis a toda a população, especialmente aos grupos mais vulneráveis.
Quanto aos autotestes, qual é a situação hoje e qual é a sua ideia do que seria o modelo ideal para termos no país?
Você consegue ir a uma farmácia e comprar um teste para a covid-19 e ter o diagnóstico. No caso das doenças com as quais trabalho, se você quer um teste rápido não é possível ir à farmácia e comprar. Pode-se conseguir teste rápido para a tuberculose se estiver na área de um posto de saúde, mas há lugares onde não lhe dão resposta no momento, agendam para retorno no dia ou na semana seguinte. Então, o que eu quero é tornar universal o acesso aos métodos de diagnósticos mais rápidos e eficazes, para que você possa pegar as pessoas na sua primeira visita, sem ter que agendar, sem ter que voltar mais tarde, sem ter que passar pelo processo burocrático. Tornar acessível não é fornecer às unidades de saúde o teste, mas fornecer às pessoas afetadas, ou em risco, a possibilidade de se autotestarem. Então, para isso, você precisa atuar em conjunto com a sociedade civil e com a iniciativa privada, com todos os parceiros possíveis, que possam chegar às pessoas que mais precisam. A detecção é o primeiro e mais importante passo para controlar e eliminar a doença. Mas não adianta ter todas as tecnologias disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde) se as pessoas não chegam à rede para atendimento. Vamos pensar o acesso de forma correta para cada tipo de população e, para isso, usar os meios adequados, seja sociedade civil, parceiros dentro do governo.
O senhor tem falado sobre a eliminação do HIV e da tuberculose no Brasil. Como isso será possível?
Não quero passar a falsa impressão de que vamos acabar com tuberculose e HIV em quatro anos, não é isso. As metas de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) tratam da eliminação de todas essas doenças, especialmente o HIV, até 2030. A OMS é um pouco mais cautelosa, fala sobre a eliminação dessas doenças até 2035. Mas, quando falamos de eliminação, não se trata de não ter mais casos, isso seria a erradicação, que conseguimos com vacinas eficazes e política pública de acesso universal em que todos sejam vacinados. Isso foi o que aconteceu com a poliomielite e a varíola. Tenho insistido nisso: a eliminação dessas doenças é uma questão de saúde pública. Hoje, no Brasil, há 34 casos de tuberculose por 100 mil habitantes. A eliminação é formalmente alcançada quando você tem 10 casos por 100 mil. Então, não estamos tão distantes.
E como essa abordagem será feita?
Acrescentando as medidas de proteção social, que é uma política do governo, não do Ministério da Saúde, transferência de renda, bem-estar familiar, todas as ações para eliminar a pobreza e a miséria. Essas ações são direcionadas aos determinantes sociais e às novas tecnologias que podemos introduzir, de diagnóstico, testes rápidos, autotestes para todas essas doenças e prevenção, além do tratamento. Então, há uma possibilidade concreta de termos alcançado as metas de desenvolvimento sustentável até 2030 ou 2035, para eliminar essas doenças. É isso que tenho insistido. Junto a isso, todos os determinantes sociais da saúde, com os quais vamos trabalhar em outros ministérios também, não só na Saúde. A perspectiva intersetorial é onde quero dar mais peso e transformar em política de governo as políticas sanitárias que ficam circunscritas ao SUS. Eliminar a aids e a tuberculose é algo que não será alcançado se for através de uma política apenas biomédica e sanitária.
Como será a comunicação do departamento em assuntos como HIV/aids?
Decidimos dar grande visibilidade novamente, contra todo o silêncio, todas as omissões que observamos nos últimos anos em relação a esses problemas e às populações invisibilizadas, através da campanha permanente que vamos retomar. Não será uma campanha em que, como ocorre muitas vezes, fala-se sobre uma doença no dia mundial dela: a aids é mencionada em 1º de dezembro, a tuberculose, em 24 de março. As campanhas sobre doenças sexualmente transmissíveis vão voltar a ser permanentes, essa é uma decisão da comunicação do ministério, para sempre trazer de volta o tema, lembrando às pessoas que não se restringem somente uma vez por ano, naquele dia. A volta da campanha se deu agora no Carnaval. Espero que as campanhas de prevenção contra o HIV/aids, hepatites virais, outras ISTs, sejam históricas, sejam a marca do retorno de toda comunicação no sentido da prevenção e cuidado dessas doenças.
E como será essa estratégia permanente?
Ainda estamos em discussão com as agências de publicidade. A intenção é fazer uma campanha histórica para retomar essa discussão e tornar visível o que foi omitido nos últimos anos. O Carnaval foi marcante para trazer de volta o tema. Mas a ideia não é marcar apenas o Carnaval com a aids, e sim trazer essas doenças de volta para a visibilidade. E, a partir daí, há um cronograma muito bem estabelecido para cada uma dessas populações e cada um desses profissionais que precisam estar envolvidos. Então, teremos material, educação, treinamento, treinamento para profissionais de saúde para lidar com isso, para profissionais da Justiça para lidar com isso, para profissionais de saúde indígena. É um trabalho com um caráter permanente, não casual.
O senhor está assumindo um departamento importante na Saúde em um momento em que vacinas são contestadas, não pela maioria da população, mas pelos movimentos antivacina, que têm crescido no mundo e no Brasil nos últimos anos. O que será feito a respeito disso?
Esse será o foco não apenas da minha área, ou mesmo do Ministério da Saúde, mas de todo o governo. Vamos ter o retorno à priorização da vacinação. Você verá isso, em muitas campanhas publicitárias, em momentos totalmente inesperados. Então, vamos trazer esse assunto da vacinação, não apenas na perspectiva da campanha nacional com o Zé Gotinha para a poliomielite, por exemplo, mas em situações inesperadas. A ideia é fugir da questão biomédica e levá-la aos momentos de seriedade e lazer para inserir a discussão da vacina em toda a sociedade, de uma maneira permanente e que não saia da pauta nacional e da cabeça das pessoas.
O que de mais relevante o senhor espera fazer nos próximos anos no departamento?
O mais importante neste retorno é o trabalho articulado entre o governo e a sociedade civil. É necessário envolver todos os atores da sociedade civil, da academia, de todos os níveis do SUS também, para que possamos ter algum avanço em qualquer questão. Então, na minha área específica, esta é a maior prioridade, a inclusão do movimento social, das pessoas afetadas, na resposta às suas necessidades. Não será uma bala de prata, não será uma imposição de cima para baixo, mas será uma construção coletiva com a participação da sociedade civil.