Aos 60 anos, Beatriz Araujo está no comando da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac) por mais quatro anos. A produtora cultural, que antes dirigira o Theatro Sete de Abril e a 11ª Bienal do Mercosul, liderou a pasta na primeira gestão de Eduardo Leite e, na sequência, de Ranolfo Vieira Júnior.
Em seus primeiros quatro anos, enfrentou dificuldades por conta da pandemia e da falta de diálogo com o governo federal. Por outro lado, conseguiu promover investimentos nas instituições culturais do Estado, duplicar investimentos pela Lei de Incentivo à Cultura, além de obter parcerias para a aplicação da Lei Aldir Blanc.
Para os próximos quatro anos, os livros e a leitura devem ganhar maior foco da pasta, assim como a conclusão e realização de mais obras no patrimônio. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete, a secretária fez um balanço dos primeiros anos e falou sobre os desafios de seu novo mandato.
Como a senhora avalia os primeiros quatro anos à frente da Sedac?
Foram quatro anos atípicos. Primeiro, tivemos que recriar a Secretaria da Cultura, pois estava ligada a outros segmentos (no governo de José Ivo Sartori, a Cultura se fundiu com Esporte, Turismo e Lazer). Tivemos muitas limitações na montagem do novo organograma, considerando que estávamos dividindo a secretaria. Foi um trabalho bem interessante, pude escolher pessoas muito qualificadas. Quando estávamos querendo levantar voo, veio a pandemia. Tivemos de repensar todo o trabalho, que passou a ser social também. Precisávamos lançar socorro aos trabalhadores da cultura. Foi um período muito desafiador. Antes mesmo da Lei Aldir Blanc, tínhamos feito um edital (FAC Digital RS). Flexibilizamos ainda a possibilidade da execução dos projetos em andamento, para que pudessem ocorrer de forma alternativa e as pessoas continuassem trabalhando. Foi um período muito difícil, no qual a nossa articulação política se fez necessária. A aprovação da Lei Aldir Blanc e a sua própria regulamentação foram processos penosos, pois tínhamos um governo federal contrário a essa legislação. Nosso Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura atuou como se fosse o Ministério da Cultura.
De maneira autônoma?
Sim. Tivemos que nos articular com o Congresso o tempo todo. A sociedade civil trabalhou muito nesse processo todo. A partir daí, conseguimos fazer com que essa legislação fosse aprovada e os recursos, repassados. Ao mesmo tempo, tivemos nos quatro anos o aumento do nosso Pró-Cultura (sistema unificado de fomento da cultura no Estado). Tínhamos já um planejamento, mesmo com a situação fiscal do Estado, que era bastante complexa. Conseguimos aprovar desde o primeiro ano o aumento do limite global do sistema.
Como foi possível esse aumento?
Fazia seis anos que o Pró-Cultura estava congelado em R$ 35 milhões. Como existe a crença do governador Eduardo Leite em relação à importância da cultura, tanto social quanto economicamente, foi muito simples aprová-lo. A proposta de dobrar o investimento era para os quatro anos, mas o objetivo de alcançar R$ 70 milhões já se deu no terceiro ano. O governador aceitou, e nós fizemos um esforço dentro do governo para que se pudesse cumprir a meta, e a cumprimos. Foi um esforço muito grande, porque se trata de um montante bastante significativo que uma mesma equipe teve de fazer rodar até chegar lá na ponta da realização dos projetos. Nós inovamos. Realizamos uma conferência para definir o uso dos recursos e fizemos parcerias com a Central Única das Favelas (Cufa), a Fundação Marcopolo e o Instituto Trocando Ideia em três editais que facilitaram a chegada do recurso até onde nós nunca poderíamos tê-los colocado diretamente. Por exemplo, a Cufa levou recursos para os bairros mais vulnerabilizados do Estados, aproveitando a capilaridade que ela tem e que nós não temos. A Cufa conseguiu chegar a agentes culturais e líderes comunitários, alcançando cerca de 4,7 mil pessoas. A Fundação Marcopolo chegou a todas as regiões do Rio Grande do Sul. Ressalto isso porque a maioria dos Estados brasileiros não quis fazer esse exercício de parcerias porque temia que o Tribunal de Contas da União as vetaria, acreditando que só as secretarias de Cultura podiam executar esses recursos. Nossa Procuradoria-Geral do Estado entendeu que não.
Nós inovamos. Realizamos uma conferência para definir o uso dos recursos e fizemos parcerias com a Central Única das Favelas (Cufa), a Fundação Marcopolo e o Instituto Trocando Ideia em três editais que facilitaram a chegada do recurso até onde nós nunca poderíamos tê-los colocado diretamente.
Agora, isso já está previsto na Lei Aldir Blanc II.
Isso é o mais bacana. Quando a nova lei foi feita, esse dispositivo já foi colocado no texto. Isso dá segurança para os Estados trabalharem com parceiros. Não tenho dúvida de que esse exercício que nós fizemos foi o que pautou a Lei Aldir Blanc II para trazer esse dispositivo. Alguns Estados não conseguiram usar os recursos, porque também tiveram dificuldades junto às procuradorias. Considero que o Estado foi protagonista nacional na execução dos recursos da Aldir Blanc.
Quando a pandemia arrefeceu, foi possível retomar o planejamento de onde parou?
No último ano, a gente finalmente teve recursos de Tesouro para investir. E aí surgiu o Avançar na Cultura. Quando o governador me convidou para ser secretária, me disse que não tinha nada para oferecer, que o Estado não tinha dinheiro. O que ele podia me dar era a liberdade de poder montar uma equipe bacana. E foi o que fiz. Quando finalmente tivemos recursos, ele me chamou e orientou a fazer o planejamento dos sonhos para saber se poderia atender. E nós fizemos, dentro do que conseguiríamos realizar, dentro da nossa limitação de equipe.
No último dia 7, a senhora esteve em Brasília para se reunir com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, e outros secretários do país. Embora a relação esteja no início, como tem sido a perspectiva de diálogo com o governo federal?
Sempre tivemos proximidade nas políticas (públicas de cultura). Tive aqui, por exemplo, a missão de regulamentar a política estadual do Cultura Viva (programa federal lançado em 2004 para estimular e fortalecer no país rede de criação e gestão cultural, tendo como base os Pontos de Cultura), que tinha sido criada no primeiro governo Lula, mas que foi desconsiderada pelos governos que o sucederam. Quando chegamos ao governo do Estado, em 2019, fizemos essa regulamentação. Estou falando isso porque esse diálogo, assim como a possibilidade de divergir, agora existe. Isso é muito importante. Os governos do PT pecaram em algumas questões que precisam ser observadas para que não pequem novamente, ainda que tenham dado muita importância para a cultura. Um exemplo é o Cultura Viva, que era visto por muitos como um aparelhamento partidário, tanto que a maioria dos Pontos de Cultura no Rio Grande do Sul tem fortes vínculos partidários com o atual governo. Meu papel é reconhecer os Pontos de Cultura, afinal, há uma lei que deve ser cumprida, mas também alertar, o que já fiz para a ministra Margareth, para que, na criação de novas instâncias de diálogo com a sociedade civil, essa partidarização não se repita. O governo federal, agora, está pensando em criar comitês em todos os Estados. É importante que não aconteça o que aconteceu com o Cultura Viva, que em alguns Estados nem existe, pois era visto como algo do PT. Nesse dia, com a ministra, pude externar minha preocupação com a criação dos comitês e também com a necessidade de participar da regulamentação da Lei Paulo Gustavo, para que os Estados não tenham dificuldade nessa regulamentação. E que não exista dirigismo cultural, que exista respeito à diversidade de fato. Vejo um espaço para o diálogo, pois a ministra acolheu de maneira muito verdadeira essa manifestação, que não foi só minha, pois outros secretários também apresentaram apreensão em relação à criação de comitês. Me sensibilizou o próprio fato de a ministra reunir todos os secretários e principais assessores. Foi uma troca linda, que até agora eu não havia tido como secretária.
O diálogo com o ministério não ocorria no governo anterior?
Nunca. Não tivemos nenhuma reunião, zero contato. A única vez que tive contato com o ex-secretário nacional da Cultura Mario Frias foi quando eu soube que ele estava em Porto Alegre, indo para Gramado. Como respeito a relação institucional, eu o procurei e fiz o convite para que visitasse duas instituições da Sedac. Relutantemente ele aceitou e foi ao Margs e à Casa de Cultura Mario Quintana. Foi a única vez que estive com ele. Fora isso, houve uma ou outra reunião online do Fórum de Secretários, mas ele nunca foi atento, nunca respondeu nada. Os assessores respondiam por ele. Foi muito difícil. Nesse período, o fórum se fortaleceu. Agora fico feliz só em já ter o direito de divergir.
Qual deve ser o foco da Sedac nos próximos quatro anos? Que demandas devem ser priorizadas?
Algo que a gente não pôde fazer nos quatro anos anteriores foi trabalhar com livro, leitura e literatura. Nós não tínhamos a possibilidade de ter um departamento. Havia uma limitação enorme no organograma. Agora temos um departamento específico na secretaria, Livro, Leitura e Literatura (LLL). Vamos ter muita coisa bacana nessa área. Temos um diretor, Benhur Bortolotto, que já está trabalhando no planejamento. A intenção da Sedac é atuar junto à Secretaria de Educação. O Estado terá escolas com período integral no próximo ano. Isso dará condições de inserir a cultura no processo da educação. Nós entendemos que a arte tem de estar inserida nesse processo. A Sedac vê com entusiasmo a possibilidade de trabalhar nessa parceria. Além disso, recebemos a cessão de uso do Teatro do IPE (em Porto Alegre), que acredito que é um espaço que precisa ser resgatado. E está fechado há mais de 20 anos.
Quando surgiu esse projeto do Teatro do IPE?
Ano passado começamos a conversar com os presidentes do IPE (Instituto de Previdência do Estado). Vínhamos negociando. Agora vai ser uma grande desafio. Como eu vou resolver? Não sei ainda. Isso faz parte da nossa atuação na cultura, os desafios vão surgindo e a gente vai trabalhando. Nós vamos apresentar um edital, se tiver de colocar em Lei, vamos colocar, se a gente conseguir recurso do Tesouro, nós vamos usar. Vamos entregar o Teatro do IPE ainda no nosso governo. E terminar as restaurações que estão em andamento. Investimos milhões em patrimônio histórico e ainda estamos investindo.
Há previsão de reinauguração?
Ainda não. Estamos trabalhando no cronograma. A nossa ideia é que neste ano tenhamos o projeto executivo. Temos três possibilidades: a Lei Rouanet, por meio de edital ou com recursos do Tesouro. Em 2024, queremos licitar a execução. E, se possível entregar até o final de 2024. Pode não acontecer? Pode. Ao trabalhar no âmbito público, a gente aprende que o timing é completamente diferente da iniciativa privada.
Como a secretaria deve trabalhar para aplicar as Leis Aldir Blanc II e Paulo Gustavo no Estado? Deve prever novamente o modelo de parceria?
Nossa ideia é buscar parcerias sempre. Inicialmente, fazendo consulta à sociedade na hora da aplicação dos recursos para a gente ter os critérios, para que possa fazer os editais. Temos conversado com colegiados de cada setor. Dentro do possível, atendemos as demandas.
A intenção da Sedac é atuar junto à Secretaria de Educação. O Estado terá escolas com período integral no próximo ano. Isso dará condições de inserir a cultura no processo da educação. Nós entendemos que a arte tem de estar inserida nesse processo.
Houve alterações recentes no Fundo de Apoio à Cultura (FAC) buscando facilitar patrocínios de pequenas e médias empresas. Descentralizar e diversificar a distribuição de recursos é um objetivo? Como isso está sendo pensado?
Todos os nossos editais do FAC garantem investimentos nas nove regiões funcionais do Estado. Também temos as ações afirmativas, Pontos de Cultura, que, normalmente, são localizados em regiões vulnerabilizadas. Pessoas trans, comunidades originárias, nós temos vários grupos que têm uma pontuação diferenciada nos nossos editais. A Lei de Incentivo é mercado, e as pessoas precisam entender isso. Ao Conselho de Cultura (que aprova os projetos candidatos a receber recursos com incentivo) cabe observar questões como a dessa pergunta. O Conselho tem integrantes de todas as regiões do Estado, inclusive representante indígena. O colégio eleitoral que elege hoje é muito maior do que era quando nós chegamos. Ainda não funcionou 100%, a formação atual do Conselho é a primeira com essas características. As questões vão surgindo e sendo observadas.
O programa Avançar na Cultura destinou investimentos significativos em vários equipamentos da cultura. Qual a situação das obras investidas em patrimônio histórico através desse programa?
Nós investimos em todos os equipamentos da Sedac, em um total de R$ 112 milhões, dos quais R$ 53,9 milhões para manutenção e obras, serviços e aquisições. Também fizemos um edital, Mais Museus, que foi super bacana e totalizou R$ 24 milhões, dos quais R$ 17,5 milhões foram investimentos do Tesouro, com contrapartidas dos municípios. Há seis museus novos surgindo no Estado. Apresentamos as demandas de todas as nossas instituições, e todos os museus passaram a receber obras. O Theatro São Pedro estava há 10 anos com as obras paradas do Multipalco, e nunca havia recebido recurso do Tesouro. Nós colocamos R$ 25 milhões lá. É algo que a gente tem muito orgulho. Obras no Margs e no Museu Julio de Castilhos, com restauração nos dois prédios e a construção de uma reserva técnica. A Biblioteca Pública do Estado ainda está passando por obras. Tivemos muitas que já aconteceram e outras que continuam.
Faz bastante tempo que a inauguração da nova sede do Museu de Arte Contemporânea (MACRS), no 4º distrito, vem sendo postergada. A previsão ficou para este ano?
Nós tivemos muito problema com o projeto, que foi doado pela Associação de Amigos do MACRS. Só que ele tem que passar pela Secretaria de Obras Públicas. Ali foi e voltou. E foi e voltou de novo. Há muita demanda de obra, naturalmente, então a gente ainda não conseguiu vencer essa pauta. Agora estamos conseguindo vencer, e a ideia é licitar e entregar ainda em 2023.
A cultura é o que nos sustenta. É de onde a gente parte. Para nós, a cultura passa pelo simbólico. Mas é importante ressaltar que mais de 4% do PIB gaúcho é da economia criativa, onde a cultura e a arte estão inseridas.
Falando no Multipalco Eva Sopher, o Teatro Oficina tinha previsão de abertura em dezembro. Qual a nova previsão?
Passou para março porque faltava ainda alguma coisa de equipamentos. A abertura está prevista para o dia 27 de março. Estamos entusiasmados porque o espaço está maravilhoso.
O Theatro São Pedro vai ser fechado neste ano para reforma?
Sim. O plano era o fechamento imediato já no primeiro semestre, mas teve um certo delay por conta da Lei Rouanet. Segue funcionando na primeira metade do ano. Deve ser fechado no segundo semestre. O teatro foi reinaugurado a partir daquela recuperação que a Dona Eva coordenou. Quando ela começa a trabalhar no Multipalco, os recursos foram migrando para esse projeto. E o São Pedro foi ficando. Agora a climatização está funcionando, mas o teatro estava com problemas bem sérios. A Associação de Amigos do TSP, por meio do presidente, Gilberto Schwartsmann, conseguiu resgatar o projeto que estava parado na Lei Rouanet, obteve patrocínio da Gerdau e colocou as coisas para funcionar. Há uma atualização do prédio, pensando em acessibilidade e PPCI, que está pendente. Agora vamos conseguir resolver. A obra deve durar, no total, 18 meses.
Em 2021, foi divulgado que o setor audiovisual no Estado teve alta de 18,9% no número de empregos entre 2006 e 2018. Em 2022, a Sedac lançou edital que destina R$ 12 milhões a projetos da área. Como a secretaria enxerga o setor e o que planeja para fomentá-lo?
Procuramos ter uma relação estreita com os players do audiovisual, que é uma cadeia enorme. Esse edital foi o maior que o FAC teve até hoje, exatamente por entendermos o tamanho do audiovisual no Estado. Com a Lei Paulo Gustavo, vamos pensar muito atentamente de que forma vamos fazer a aplicação do recurso. Desses R$ 93,4 milhões que vêm para o Estado, 60% será destinado ao audiovisual. Vamos conversar com produtores para entender como fazer a aplicação desses recursos.
Na sua opinião, De que maneira a cultura é importante para a economia gaúcha e para a formação humana?
A marca que eu quero deixar como secretária é o patrimônio material e imaterial. A cultura é o que nos sustenta. É de onde a gente parte. Vou continuar investindo na preservação do patrimônio e na celebração das culturas. Se a gente vai perdendo a memória, essa coisa de saber e entender de onde a gente vem, não temos perspectiva de futuro. Para mim, a cultura é ter referências e preservar, de alguma forma, a memória, para que a gente possa seguir. Para nós, a cultura passa pelo simbólico. Mas é importante ressaltar que mais de 4% do PIB gaúcho é da economia criativa, onde a cultura e a arte estão inseridas. É uma economia que a gente valoriza demais, para que as pessoas vejam que o Rio Grande do Sul é um espaço que acolhe e que inspira as pessoas a desenvolver atividades lúdicas e, com elas, possam viver bem. Tendo arte e a cultura preservadas e investindo nisso, o Estado pode ter ainda mais do que 4% do seu PIB vindo da economia criativa.