A Olimpíada de Tóquio mal terminou e o erro histórico já se repete, inclusive na imprensa. O bordão é: "Paris 2024 é logo ali". Um gancho até razoável. A pandemia reduziu de quatro para três o hiato de espera. Assim, com a vacinação completa no mundo, os ciclos de quatro anos voltarão a normalidade. Isso se outra pandemia não aparecer e virar nossas rotinas de cabeça para baixo à espera de novas vacinas. Assustador, eu sei, mas nada improvável. Os infectologistas não cansam de avisar que não se trata de "se", mas de "quando". O fato é que está acontecendo de novo. O erro de sempre.
Os Jogos terminam e os atletas somem do noticiário em nome da monocultura do futebol. Quando muito, saem alguns textos da recepção na cidade dos medalhistas, eles desfilando em carros de bombeiros. Pode ser que pingue um rescaldo, claro. Como eles se tornaram celebridades, durante algumas semanas é provável que habitem o noticiário. Tipo um BBB pós-edição. Brothers e sisters viram celebridades, mas o tempo passa e ninguém lembra mais. Duvido que você lembre de cabeça de metade dos vencedores do programa, uma febre de audiência que aumenta na razão inversa das críticas de estar ultrapassado.
É injusto com atletas que são os melhores entre os melhores do planeta. Mayra Aguiar, a nossa judoca medalhista de bronze. Rebeca Andrade, ouro e prata na ginástica. Isaquias Queiroz, o super-homem da canoagem. Até a fadinha Rayssa Leal. Eles vão quase desaparecer do noticiário. Um espaço aqui e ali, em caso de título ou participação em mundial. E olhe lá. Voltarão só em 2024. E eles que experimentem não trazer medalhas. Se não vier pódio, não faltarão análises próprias do futebol. Amarelões. E os que "perderam", quer dizer, os que não subiram ao pódio? A estes, anonimato completo. Salvo exceções autoexplicativas.
Darlan Romani, do arremesso de peso, é um caso. Imagens dele treinando em um terreno baldio durante a pandemia, na cara e na coragem, ainda se recuperando de uma hérnia de disco, viralizaram nas redes sociais. Assim como viralizou a cena dele, apelidado de Sr Incrível em razão do desenho animado da Disney/Pixar, chorando ao falar ao SporTV logo após ficar em 4º lugar em Tóquio. Darlan pediu desculpas. Ficou entre os cinco do mundo treinando em terreno baldio e cheio de lesões e sente necessidade de pedir desculpas, como se tivesse algo errado ou reprovável. Não é um absurdo?
A fragilidade revelada pelas lágrimas do gigante de 1m90cm e 140 quilos mobilizaram o país. Uma vaquinha virtual arrecadou o dobro do que Darlan precisava para começar uma preparação em alto nível rumo a Paris. Ele ficou com os R$ 150 mil de que precisava e doou o resto para instituições de caridade, como forma de devolver a sociedade o dinheiro a mais que dela recebeu. Um gesto impensável em Brasília. Mas repare: a ajuda a Darlan decorre do acaso. E se ele não se emocionasse ao final da prova? E se, por este ou aquele motivo, o vídeo treinando em condições deploráveis não circulasse?
O sentimento de pena o ajudou. Não digo que é ruim, porque a caridade é um gesto nobre. Mas o que aconteceu com Darlan é o reflexo de um país monoesportivo. O acompanhamento dos esportes olímpicos praticamente inexiste na grande imprensa. Ou não recebe o destaque adequado, para abranger exceções que confirmam a regra. É um problema nem tão simples assim. As pessoas, de fato, se interessam menos. Querem saber de futebol. A nova revelação da base de Inter e Grêmio mobiliza mais do que a lesão grave da bicampeã (mundial) Mayra, motivo de uma recuperação fantástica para Tóquio.
Tudo o que ela estava fazendo na Sogipa ficou escondido durante meses. O Brasil só soube em detalhes horas antes da subida subida ao tatame. Aí os holofotes foram ligados. É isso que falta para os esportes olímpicos: visibilidade. Quem vai patrocinar atletas e modalidades que não aparecem em lugar algum e, quando aparecem, tem uma pegada de favor? Por outro lado, os veículos de comunicação têm dificuldade em garantir audiência para esportes olímpicos fora do grande evento midiático que é uma Olimpíada. E, mesmo para os Jogos, conta-se nos dedos as empresas que bancam os custos altíssimos, entre compra dos direitos de transmissão e o envio de equipes para a cobertura fora do país, como fez a RBS no Japão.
O Poder Público, que no mundo inteiro incentiva o esporte desde as escolas, inclusive com recrutamento de futuros talentos, seja em Cuba ou nos Estados Unidos, não cumpre o seu papel. Há iniciativas aqui e ali, claro que sim, mas são projetos com ajuda privada e que contam com abnegados como Antônio Carlos Kiko Pereira, com o judô da Sogipa, que mantém a chama viva. Ou vaquinhas pela internet. Os atletas passam a ser patrocinados e a receber ajuda financeira só quando chegam ao topo e podem oferecer algum retorno em patrocínio, e não o contrário.
O pai do gaúcho João Derly, bicampeão mundial no judô, vendeu o carro da família para bancá-lo em competições no Exterior, antes do estrelato. É impossível evoluir sem enfrentar os melhores lá fora. A maioria dos nosso futuros medalhistas fica aí, no meio do caminho. E se João pai não tivesse carro para vender? Um país abençoado pela miscigenação como o Brasil, de dimensões continentais, com biotipo para qualquer modalidade imaginável, nunca vai deslanchar de verdade se continuar com essa mentalidade. Não se deixe seduzir pela gritaria nacionalista do "recorde de medalhas".
Poderíamos ser uma potência esportiva, mas enquanto acharmos que o tempo olímpico se resume apenas ao hiato entre uma edição e outra, seremos sempre dependentes do acaso, do sucesso individual deste ou daquele atleta que sacrifica a própria vida para, tendo nascido no Brasil, encarar os craques forjados no apoio em tempo integral lá fora. Não senhores, Paris não é logo ali.