De todos os seres humanos perigosos do mundo, os mais perigosos são os idealistas bem-intencionados. Porque esses têm justificativa para a maldade. Eles se absolvem internamente, alegando: “Fiz isso por algo maior”. E, externamente, também são absolvidos por seus pares, por aqueles que com eles compartilham crenças ou ideias.
O Brasil viu, nos últimos dias, cristãos atacando uma menina de 10 anos de idade que queria abortar o fruto de um estupro cometido por seu próprio tio, estupro esse que vinha ocorrendo desde que ela tinha 6 anos. Em nome de que os religiosos apontaram o dedo contra a menina e os médicos que a atenderam?
Em nome de Deus.
Ora, Deus é algo intrinsecamente bom, sobretudo o deus cristão, que é deus do amor e da tolerância. Como, então, esses cristãos se tornaram tão intolerantes, a ponto de não compreender o drama terrível por que passa uma criança e sua família?
É que o cristianismo que elas professam ultrapassou sua humanidade. Trata-se de uma excruciante contradição: o cristianismo, que, mais do que tudo, prega o amor ao próximo, é tão grande para essas pessoas que, para elas, se tornou maior do que o próximo. É um fenômeno que acontece com frequência no Direito: a letra da lei fica maior do que o sentido da lei.
Assim ocorre com o idealista político ou com o defensor de causas humanitárias ou das minorias. Em nome de uma causa boa, ele faz o mal. Não é à toa que o militante sempre diz estar “na luta”. Não foi à toa que Paulo de Tarso disse que combateu o bom combate. Quem luta, luta contra alguém. Ele tem inimigos a derrotar. Quer dizer: ele não está tentando fazer com que as outras pessoas compreendam as ideias ou crenças positivas que prega. Não. Ele quer eliminar as pessoas que não compreendem as ideias ou crenças positivas que prega. Ele quer vencê-las. Ele quer extingui-las.
Essa é a miséria do Brasil de hoje, um país em que todos têm a razão do seu lado. Todos estão certos e cheios de certezas, no Brasil. Há os nacionalistas, os antifascistas, os antirracistas, as feministas, há os campeões dos pobres, dos gays e dos animais, há os inimigos da corrupção, os crentes em Deus, os homens de moral. Há bem-intencionados de todas as cores, há bem-intencionados para todas as boas causas, portando todas as bandeiras importantes. Esses bem-intencionados “cancelam” quem lhes afronta as crenças ou as ideias, eles insultam, caluniam e agridem os que aparentemente não concordam com eles, porque eles estão “na luta”. Eles combatem o bom combate. Eles querem derrotar seus inimigos.
Somos uma nação de inimigos.
Algumas vezes já li e ouvi os autointitulados “antifascistas” adaptando um ditado alemão sobre o nazismo. Eles dizem o seguinte: “Se há 10 pessoas numa mesa e um fascista chega e senta-se entre eles, e ninguém se levanta, então existem 11 fascistas”. Mas, na verdade, se há 10 pessoas numa mesa e um fascista chega e senta-se entre eles, e alguém se levanta, então existem dois fascistas.