Por que haveríamos de falar do Queiroz, do Bolsonaro, do Lula, dos sítios de Atibaia, do corona e do confinamento, se podemos falar de bolinho com cerveja?
No caso, um bolinho especial: de feijoada! Nunca tinha comido bolinho de feijoada. Nem sabia que existia. A primeira pessoa que me falou do bolinho de feijoada foi o Nilson, garçom do Tartare. Ele fez uma descrição pormenorizada do bolinho de feijoada que um dia comeu em Curitiba, deixou-me salivando e acrescentou uma informação inquietante: gaúcho não aceita o bolinho de feijoada.
“Por que, não?”, perguntei, já revoltado com nosso conservadorismo culinário. “Por quê?”
Ele explicou, do alto da sua experiência de garçom e cozinheiro, que o gaúcho só gosta de comer feijoada aos sábados de inverno, ao meio-dia, e que a feijoada haverá de ser ortodoxa, na cumbuca, jamais em forma de bolinhos. Aquilo me deixou agastado. Pensei: isso significa que, vivendo no Rio Grande do Sul, nunca conseguirei provar um bolinho de feijoada?
Só que Maria Adolfina também foi a Curitiba e também comeu bolinho de feijoada e isso propiciou um final feliz para a nossa história. “Quem é Maria Adolfina?”, você deve estar se perguntando agora. Responderei: é a cozinheira do Tartare, colega do Nilson. Ou seja: uma cozinheira profissional.
Tenho respeito, admiração e até um pouco de inveja dos cozinheiros profissionais. Há uns 20 anos li o livro de Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, que conta os bastidores de restaurantes internacionais, com estrelas no Guia Michelin.
Bourdain, você há de se lembrar, foi um chef conhecidíssimo, tinha programa na TV e tudo mais. Dois anos atrás ele se enforcou em seu quarto de hotel, na França. Para mim foi chocante, pois sempre penso que pessoas que amam comer amam a vida. Por que um chef, com exceção do infeliz Vatel, matar-se-ia?
Talvez não lhe ocorra agora, mas você sabe quem foi Vatel: ele foi o inventor do chantili, creme que batia com o leite peculiarmente cremoso das vacas da cidade de Chantilly, na França. Vatel se suicidou devido ao atraso dos peixes com os quais faria um jantar para Luiz XIV, o Rei Sol. Assim que ele morreu, os peixes chegaram, uma lástima.
Já o livro de Bourdain é ótimo. Não apenas porque revela histórias saborosas (adjetivo adequado) que se passam nas cozinhas dos restaurantes, mas porque até dá dicas, tipo: jamais peça peixe na segunda-feira. Em geral, os restaurantes encomendam na quinta ou na sexta os peixes para o fim de semana e os que restam para segunda são, exatamente, os que restam. Quer dizer: não são frescos.
Outra dica de Bourdain: antes de comer em um restaurante, vá ao banheiro. Se o banheiro não estiver limpo, a cozinha não estará, porque uma cozinha é muito mais difícil de limpar do que um banheiro.
Uma última: os fregueses mais respeitados, para os profissionais dos restaurantes, são os que vão jantar de terça a quinta. São os clientes mais atenciosos, que dão as melhores gorjetas e que não pedem coisas repugnantes, como filés bem passados. O filé bem passado, para um maître, como Bourdain, é tão-somente mau gosto.
Mas, como ia dizendo, o livro de Bourdain me permitiu o ingresso neste mundo que tanto aprecio, o da cozinha profissional. Leia o livro, você vai gostar também.
Acontece que Maria Adolfina também é cozinheira profissional, e outro dia ela me mandou uns bolinhos de feijoada, porque o Nilson lhe falou dessa minha angústia, de nunca na vida ter comido um. Chamei a Marcinha e o Bernardo. Abri, para mim e para ela, uma cerveja que já estava branquinha no congelador, e para o Bernardo um suco de laranja adequado à sua idade. A noite caía sobre Porto Alegre e provei meus bolinhos de feijoada com pimenta, regados à cerveja bem gelada. Não falamos em Queiroz, em Bolsonaro, em Lula ou no corona. Falamos, com leveza, da vida. Quem ama comer, ama viver.