Quando Salman Rushdie esteve em Porto Alegre, em maio de 2014, a fatwa lançada contra ele, 25 anos antes, já era narrada como um infortúnio do passado. O medo bastante concreto de que um extremista decidisse obedecer ao comando de morte lançado pelo aiatolá Khomeini em 1989 (baseado em uma leitura literal do livro Versos Satânicos) havia dado lugar ao relato da experiência e a sua reelaboração. Em seu livro de memórias, Joseph Anton, publicado em 2012, Rushdie narra o episódio e seus desdobramentos em detalhes.
Diante de uma plateia lotada, na abertura do Fronteiras do Pensamento daquele ano, o escritor parecia relaxado e bem-humorado. O tema da conferência na Reitoria da UFRGS era a relação entre o espaço privado da literatura e o espaço público da política e da História. Em linhas gerais, Rushdie defendeu a ideia de que um escritor, narrando a intimidade de um personagem nos confins do Paquistão ou na Coreia do Norte, é capaz de revelar mais sobre a realidade do seu país do que um relato jornalístico frio e distanciado.
Na conferência em Chautauqua, no Estado de Nova York, onde sofreu um ataque na última sexta-feira, Salman Rushdie iria falar sobre a importância de os Estados Unidos oferecerem asilo para autores exilados. Nos últimos tempos, o escritor dizia-se mais preocupado com os rumos da democracia no planeta do que com o fanatismo religioso. “O maior perigo diante de nós hoje é o criptofascismo que estamos vendo nos Estados Unidos e em outros países”, afirmou em uma entrevista recente.
Criptofascismo é o fascismo disfarçado – e o fascismo disfarçado pode se manifestar exteriormente de muitas formas. Uma delas é o fanatismo e a intolerância religiosa. Enquanto escrevo, pouco se sabe sobre as motivações de Hadi Matar, o americano de 24 anos que esfaqueou Salman Rushdie, mas tudo nos leva a imaginar que o fato esteja relacionado com a mensagem escondida em uma garrafa e lançada ao mar em 1989 – antes mesmo de Matar ter nascido. Mensagens de ódio costumam viajar muito bem no tempo e no espaço.
Não deixa de ser didático que o atentado contra o escritor tenha acontecido na mesma semana em que Michelle Bolsonaro subiu o tom messiânico atacando religiões diferentes da sua, jogando lenha na fogueira da intolerância e do preconceito. “Desde sempre, homens têm usado Deus para justificar o injustificável”, escreveu Salman Rushdie tempos atrás. E eu assino embaixo.