Todas as casas são assombradas. Faça o teste. Volte, se puder, à casa da sua infância ou ao primeiro apartamento que comprou com seu dinheiro ou ao lugar onde uma pessoa que você amava muito viveu. Todas essas memórias estarão lá, à sua espera, como boas ou más assombrações.
Sem deixar de ser um bem material, com escritura lavrada em cartório, proprietários, herdeiros e paredes que podem ser colocadas abaixo a qualquer momento, casas são também uma espécie de memorial a tudo que não está mais lá. É por isso que preferimos as cidades que tratam bem seus fantasmas às que se empenham em apagar todos os vestígios do passado: as memórias que escolhemos preservar nos situam no espaço e no tempo, ou seja, nos dão identidade.
A demolição, na semana passada, da casa em que o escritor Caio Fernando Abreu (1948 – 1996) viveu seus últimos anos foi, ao mesmo tempo, o desfecho de uma transação imobiliária banal e uma violência simbólica. Como se o espectro do escritor ainda estivesse ali, cercado de girassóis, fumando um cigarro e pensando na vida (ou na morte), enquanto as retroescavadeiras, movidas pela lógica sempre muito sensata da destruição, faziam seu trabalho.
Não que sua memória corra o risco de desaparecer. Objetos que pertenceram ao escritor estão hoje guardados no Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS. A coleção inclui recortes de jornal, manuscritos, originais de livros e outros documentos, alguns deles disponíveis para consultas online. Editorialmente, o legado de Caio Fernando Abreu também está em boas mãos. Em 2018, para marcar os 70 anos do nascimento do escritor, a editora Companhia das Letras publicou um volume de mais de 700 páginas com seus contos completos – o primeiro de uma série de lançamentos previstos para os próximos anos. Em artigos e teses acadêmicas, nas redes sociais, nos clubes de leitura e nos saraus literários, a situação não é muito diferente: a obra de Caio Fernando Abreu continua viva e vibrante, graças ao crescente interesse pelos seus livros.
Em uma Porto Alegre que não existe, a simpática casinha da Rua Oscar Bittencourt teria sido transformada em museu ou centro cultural. Leitores de outros Estados teriam um motivo a mais para visitar Porto Alegre, e quem nunca leu ou ouviu falar do autor de Morangos Mofados poderia entrar em contato com sua obra. Na Porto Alegre real, o “soft power” representado por um dos escritores mais admirados do país não valeu o esforço de uma mobilização do poder público ou da iniciativa privada.
No final das contas, a sensação de derrota que muitos de nós, leitores de Caio, experimentamos ao ver sua casa demolida é mais pelo que a cidade perdeu do que pelo que o escritor deixou de ganhar: Porto Alegre precisa mais de Caio Fernando Abreu do que Caio Fernando Abreu precisa de Porto Alegre.