Local preferido do verão nas praias do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, a região da beira-mar é espaço muito valorizado financeiramente. Afinal, quem não gostaria de uma casa ou de um apartamento pertinho dali, ou ainda curtir um restaurante perto de visual tão agradável? O avanço de construções muito próximas ao mar tem feito com que órgãos públicos aprimorem legislações e fiscalizações para preservar o ambiente costeiro, o que inclui as chamadas dunas frontais, aquelas que ficam antes da beira da praia.
Entre os órgãos que atuam na regularização de construções próximas à faixa de areia, está o Ministério Público Federal (MPF). Responsável também por temas relacionados ao meio ambiente no Litoral Norte, a Procuradoria da República de Capão da Canoa move 763 ações judiciais (696 criminais relativas ao meio ambiente e 67 cíveis de tutela coletiva ambiental). Não há levantamento de quantas são sobre construções irregulares em faixa de praia e dunas, mas boa parte trata do assunto, conforme o órgão.
Ao longo do mês de fevereiro, a equipe de GZH percorreu mais de 150 quilômetros pela costa gaúcha, entre Balneário Pinhal e Torres, para conferir obras que avançaram em direção ao mar mais do que deveriam, de acordo com o MPF e órgãos ambientais. São imóveis que já foram demolidos, que possuem sentença para demolição e há recursos a tribunais ou que ainda estão em fase inicial de discussão judicial.
Procurador da República em Capão da Canoa, André Raupp destaca que, além das ações judiciais, há tramitando no órgão inquéritos civis públicos e procedimentos de investigações criminais, além de inquéritos policiais na Polícia Federal acerca de denúncias referentes a "construções irregulares em áreas ambientalmente relevantes no cordão de dunas frontais ou próximo dele".
— A legislação ambiental protege áreas de restinga. E existe a necessidade, sempre quando alguém vai construir nessas áreas que ainda têm uma vegetação nativa ou que está próxima, que procure os órgãos ambientais — alerta o procurador.
Conforme Raupp, até o início da década de 1970, donos de terrenos no Litoral Norte dividiam a propriedade e vendiam lotes. Naquela época, não era exigido estudo ambiental para isso. Por este motivo, áreas em locais de preservação permanente, que não permitem algumas construções, têm inclusive matrículas dos imóveis.
— Em determinados locais, (a matrícula) não é suficiente para autorizar a construção. Precisa verificar a importância ambiental do terreno — acrescenta o membro do MPF.
Demolidos e em discussão
Um dos casos mais emblemáticos relacionados a esta discussão é o do Baronda, em Capão da Canoa. O histórico restaurante construído nos anos 1960 à beira-mar foi demolido em 2010, por ter sido erguido numa área de dunas frontais pertencente à União e de preservação ambiental. Atualmente, o local tem atividades de lazer para moradores e veranistas no Largo do Baronda.
Outro lugar bastante conhecido em que o processo judicial se arrasta há anos é o antigo Bali Hai, que atualmente se chama 20barra9. Localizado na praia de Atlântida, em Xangri-lá, o restaurante é um dos locais mais badalados da região. Assim como o Baronda, foi construído em cima de dunas e acabou avançando na faixa de praia, conforme a sustentação do MPF. Depois da definição da competência da Justiça Federal para julgar o caso, agora a ação está na fase de perícias. GZH esteve no local e também entrou em contato com executivos da empresa, mas até a publicação desta reportagem, não obteve retorno aos questionamentos enviados.
Em Torres, há quiosques na beira da praia em locais considerados irregulares pela Justiça, principalmente na Praia Grande. Há sentenças para demolição de, pelo menos, quatro deles: Bicão, Chapéu de Palha, Mariskão e A Baiana. Tais decisões foram objeto de recursos - com as decisões finais de primeira instância, os réus recorreram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, enquanto não há o trânsito em julgado, tudo vai ficando como está. Além destes, há outros estabelecimentos na Praia Grande em discussão judicial.
Alguns proprietários não quiseram falar com GZH e outros indicaram Alexandre Quartiero, advogado da Associação Comercial do Calçadão da Praia Grande de Torres (ACCPGT), para responder. No entendimento de Quartiero, esses empreendimentos possuem características próprias que afastariam as pretensões de remoção ou demolição defendidas pelo MPF. Sustenta que estão em regiões densamente ocupadas, sobre o calçadão, e não sobre as dunas.
— Suas atividades utilizam todos os equipamentos e serviços de infraestrutura urbana, tais como abastecimento público de água potável, rede de sistema de coleta de esgoto, coletas de resíduos comuns e seletivos, rede de energia elétrica, além de destinar seus resíduos de óleos para empresas licenciadas — afirma Quartiero, ao acrescentar que "eles não geram passivo ambiental", que estão na região há mais de 30 anos e possuem todos os alvarás municipais.
Na praia de Magistério, em Balneário Pinhal, residências construídas em cima de dunas foram demolidas após decisões judiciais nos anos de 2020 e 2021. Nesta região, é possível perceber o crescimento da vegetação e o aumento do volume de areia, num indicativo de recuperação ambiental do local.
Izarel Catarina Hoffman da Silveira, 64 anos, possui um quiosque bem ao lado do local onde estavam estes imóveis, casas construídas há décadas.
— Fazia muitos anos que eles moravam ali (os proprietários da última residência demolida). Tanto é que eles envelheceram naquela casa, até morrerem — recorda a comerciante.
Por que não pode ter construção nestas áreas
Luiz Liberato Tabajara é oceanógrafo e pós-doutor em diagnóstico e manejo de praias e dunas. Lembra que o principal papel das dunas é a preservação da costa.
— De 2016 para cá, houve uma ressaca no mar que foi catastrófica para o perfil da praia. Deu um recuo de até dez metros de duna. O pior é que não se refez essa duna. Tivemos tempestades e vento muito fortes. Temos a subida do nível do mar lenta, gradual, mas acontecendo. E as dunas são essa segurança — explica o especialista.
Tabajara reforça que as faixas de praia e de dunas merecem um cuidado especial no que diz respeito ao meio ambiente.
— A duna é um ecossistema. Ela tem interação da areia que vem da praia pelo vento. E interage com uma vegetação específica que cresce junto com a areia e aumenta o volume da duna. Junto tem a fauna que se alimenta disso, como o tuco-tuco, a lagartixinha e o siri-fantasma — observa o especialista.
Conforme o oceanógrafo, na praia de Costa do Sol, em Cidreira, por exemplo, quase 70% da costa estão ocupados irregularmente. São imóveis construídos em dunas frontais.
— São ocupações de risco, por pessoas com alta vulnerabilidade social. O problema pra elas é o mar subir e invadir essas casas — alerta o especialista.
Sobre os quiosques que ficam na beira da praia, ele explica que são estruturas temporárias sustentadas por pilotis, justamente para quando o mar subir, a água passar por baixo e voltar.
— Uma ressaca mais forte pode destruir essas estruturas. Porque isso ali pertence ao mar — pondera.
Samanta da Costa Cristiano é bióloga e PHD em gerenciamento costeiro. Também é facilitadora do Projeto Orla, iniciativa que reúne União, Estados e municípios para promover ações de cuidados com a região próxima ao mar. Para ela, é fundamental um diálogo entre todos os envolvidos para encontrar uma solução e evitar a judicialização de questões tão importantes para o meio ambiente.
— Se não tem todo mundo de acordo, fica esse imbróglio. Eu trabalho com a conscientização do proprietário (de imóvel em área irregular) para que ele entenda o impacto na região e a importância da retirada do imóvel do local — conta Samanta.
Apesar de haver casos de imóveis em áreas de dunas e de praia, Samanta considera que o Rio Grande do Sul evoluiu em termos de cuidados com essas regiões.
— O Estado é exemplo nacional, por exemplo, no Plano de Manejo de Dunas e no Plano de Uso de Faixa de Praia (esse último sazonal) — relata Samanta, ao destacar que dificilmente há construções novas nessas áreas e sim as que foram feitas há muitos anos.
Arquiteta e urbanista do Departamento de Qualidade Ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Luciana Petry Anele relata que no início dos anos 2000 se verificou que era necessário um diagnóstico da região, já que estava havendo uma confusão na ocupação da faixa de praia. Em 2002, o diagnóstico detalhou a situação dos 10 municípios costeiros, com o registro de cada empreendimento:
— Foram catalogados 650 quiosques e 39 restaurantes de grande porte em 120 quilômetros de praia com diversos impactos ambientais, como construção sobre as dunas frontais, disposição inadequada de efluentes e degradação da paisagem natural.
O diagnóstico da época, segundo a arquiteta, demostrou uma tendência à urbanização da faixa de areia. Foi então que em 2004 os representantes dos municípios da região concordaram com um termo de compromisso firmado com a Fepam, o Mistério Público Federal e a Superintendência do Patrimônio da União (SPU). Ficaram definidos, entre outros, prazos para retirada desses quiosques e restaurantes na faixa de praia. A ideia era que até 2006 não existissem edificações permanentes no local. Luciana admite a importância econômica e social dos quiosques na faixa de praia, desde que respeitadas as legislações.
— As instalações são autorizadas a permanecer na praia no período de 90 dias, prorrogáveis por 90 — ressalta.
Segundo Luciana, os outros seis meses do ano servem para recuperação ambiental do impacto causado pelas instalações.