Ano após ano, um cenário se repete em estradas gaúchas que levam ao Litoral: em um alinhamento que parece ensaiado, veículos se enfileiram como formigas, em uma formação que pode ocupar quilômetros e durar horas. Menos bucólico que a manifestação da natureza, o fluxo carregado de motoristas em direção às praias não é sinônimo de equilíbrio e organização, mas de transtornos para quem tenta chegar ao destino.
Especialistas ouvidos por GZH apontam que os congestionamentos registrados nas estradas que levam às praias do RS estão mais relacionados à tradição de veraneio do Estado e a decisões dos motoristas, do que a problemas estruturais. Por isso, defendem campanhas educativas e mais informação, para que os condutores possam planejar suas viagens. Saiba mais abaixo.
No segundo dia de 2024, uma terça-feira, o comerciante Carlos Prima, 46 anos, decidiu pegar a estrada por volta das 15h com a família do município de Imbé em direção a Porto Alegre. O tempo médio de quase duas horas de uma viagem comum quase duplicou.
— A nossa sorte é que nosso carro tem DVD, então as crianças não ficaram tão impacientes. Mas foi um arranca e para sem fim — contou o pai de duas meninas, de sete e nove anos, que diz ter "quase mofado" no trecho próximo ao pedágio de Santo Antônio da Patrulha.
A data escolhida por Prima para o retorno foi justamente a de maior movimento em um único dia na freeway, 117 mil veículos, segundo a concessionária CCR ViaSul, responsável pela rodovia. Até então, o maior fluxo registrado era de 115,5 mil, no início de 2023. O índice de motoristas trafegando em um único sentido — no caso, rumo à Capital — também foi superado: 87 mil ante os 85,2 mil em 3 de janeiro de 2021.
Outro recorde identificado pela concessionária é que, entre os dias 22 de dezembro de 2023 e 2 de janeiro de 2024, mais de 3 milhões de condutores passaram pelas estradas sob sua administração, 300 mil a mais do que o previsto e 500 mil a mais do que o apontado no verão anterior. Somente pela freeway passaram 919 mil carros, dos quais mais da metade, 526 mil, em direção ao Litoral.
— Quando elaboramos a previsão do fluxo para operações especiais durante feriados e períodos de férias, usamos como referência os números passados, fazendo algumas adequações de datas como, por exemplo, se o feriado cai em um final de semana ou se há um feriado prolongado, como aconteceu neste ano — explica Paulo Linck, gerente de Operações da CCR ViaSul.
O aumento de veículos na freeway, comparado a anos anteriores, também é percebido por Laudson Viegas, do Núcleo de Comunicação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no Estado, principalmente no trajeto de volta das praias.
Como acompanhar o movimento
A CCR ViaSul, concessionária que administra as rodovias, oferece, em seu site, acompanhamento em tempo real do tráfego nas BRs 386, 448, 290 (freeway) e 101. A própria Polícia Rodoviária Federal indica o serviço como melhor forma para verificar o movimento. Segundo a corporação, policiais acompanham o tráfego e comunicam à população, por meio da imprensa — como GZH e a Rádio Gaúcha —, quando há alguma alteração importante.
A concessionária também destaca a oferta de orientações pelo Disque CCR ViaSul, no 0800 000 0290, ou pelo WhatsApp (51) 3303-3858.
Nas rodovias estaduais, entre sexta e segunda-feira, a polícia rodoviária realiza contagem de hora em hora do fluxo em Osório, registrando o movimento das principais estradas que levam ao Litoral. A informação pode ser acessada por meio do telefone 198, pelo site do Comando Rodoviário da Brigada Militar ou pelo Instagram da corporação.
Não é só nos feriados prolongados
Se a circulação de veículos nas rodovias rumo ao Litoral aumentou no período das festas de fim de ano, a situação seguiu a mesma no final de semana seguinte, entre os dias 6 e 8 de janeiro, segundo o coronel Rogério Pereira Martins, à frente do Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM).
— Com as condições de tempo favoráveis que vimos, a tendência é de que as pessoas queiram aproveitar mais o sol no mar e retardem ao máximo o retorno para a Região Metropolitana. E, muitos fazendo isso ao mesmo tempo causam lentidão no trânsito nas estradas — aponta o comandante.
As rotas alternativas de acesso às praias, como a RS-040 e RS-020, são consideradas em boas condições por Pereira Martins, tanto na pavimentação quanto na sinalização.
— Contudo, são rodovias com muitos pontos de pistas simples, por isso também sofrem com o aumento do fluxo, especialmente na ida, nas tardes de sextas-feiras, e no retorno, nos finais da tarde dos domingos. Isso limita o aumento da velocidade e um número maior de ultrapassagens — pondera o coronel.
Conforme o CRBM, ingressaram, no último feriadão de Ano-Novo, 440 mil veículos pelas rodovias estaduais em direção ao Litoral Norte — incluindo a RS-407 e RS-453, a Rota do Sol —, 80 mil a mais do que no ano anterior. A expectativa do comandante é de que as próximas semanas sejam de movimento intenso, se o tempo contribuir.
— Apesar do aumento de circulação de veículos nas estradas, identificamos uma redução de 40% nos acidentes com mortes em relação aos feriados prolongados no final de 2022. Continuaremos em operação nas vias durante este ano para que estes dados continuem baixando — diz Pereira Martins.
Na RS-389, a Estrada do Mar, motoristas relatam problemas de sinalização e iluminação. Mesmo assim, muitos a utilizaram nos primeiros dias do ano. Houve movimento intenso em Capão da Canoa, no entroncamento com a RS-407, no acesso a Imbé pela RS-786, e na chegada a Osório passando pela RS-030, com congestionamentos desde da saída de Tramandaí.
Em relação à freeway, como medida no curto prazo, a CCR ViaSul informa que reforça "equipes de pista" durante o verão, especialmente com operação "papa-fila" nas praças de pedágio, para agilizar a passagem dos veículos.
Movimento tradicional
Experiente em áreas ligadas à segurança viária, projeto e construção de rodovias, pavimentação e estudos de tráfego, o engenheiro civil João Fortini Albano é enfático ao analisar as tranqueiras nas estradas gaúchas durante o verão:
— É mais uma questão individual, relacionada aos motoristas. É preciso haver mais planejamento das viagens e paciência, distribuindo melhor os veículos em horários distintos.
Segundo ele, as condições das vias, em geral, são boas, com destaque para RS-030, RS-040, BR-101 e BR-29o, a freeway, que ele cita como sendo "uma das melhores do Brasil". Para o engenheiro, os motoristas gaúchos acabam escolhendo os mesmos momentos para retornar do Litoral, em especial, entre a noite de domingo e a manhã de segunda-feira, motivando os congestionamentos.
— Já é tradicional, em todos os verões, lotarmos as praias, por passarmos o ano todo com clima inadequado. O veraneio se torna uma religião para nós. O movimento é mais forte na volta, quando o pessoal fica no mar até o último momento de sol para depois voltar. Sempre foi assim — afirma.
Albano acredita que o primeiro final de semana foi de grande demanda nas estradas porque muita gente que buscou as praias para os feriados de Natal e Ano-Novo resolveu esticar o veraneio. Quanto a mudanças estruturais, o especialista, doutor em Sistemas de Transportes e Logística, não concorda com ações de grande vulto, no momento:
— Seria um investimento muito grande para um aumento de faixas. Teríamos de mexer em nossas pontes, alargar viadutos, há necessidade de outra ordem. Também não acho que rodízio de placas, semelhante ao que ocorre no perímetro urbano de São Paulo, seria uma solução. Não é para tanto.
O engenheiro sugere uma campanha que envolva escolas, universidades, instituições e governos em todos os âmbitos com enfoque na gentileza. A empatia do motorista contribuiria para a compreensão de que a escolha do horário de volta de uma viagem está atrelada a consequências coletivas.
— Já que educação é, infelizmente, uma palavra batida, que tenhamos uma convivência pacífica no trânsito. Os Estados Unidos investem há alguns anos. Que diminuamos 5% o problema, já é um avanço — conclui Albano.
Infraestrutura e tecnologia
Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o doutor em Mobilidade Carlos José Antônio Kümmel Félix entende que o congestionamento é resultado de uma série de fatores, entre eles a infraestrutura disponível, demanda de fluxos e condições operacionais.
— É necessário termos várias faixas de tráfego, com os melhores elementos geométricos possíveis para que se possa percorrer o trecho, com a maior velocidade, em segurança, em função do número de veículos em circulação — relata.
Félix inclui condições do clima, como chuva, vento e neblina no momento da circulação entre os itens a serem considerados. Assim como João Fortinio Albano, o especialista também cita comportamento e postura dos condutores nas rodovias.
— Para se evitar congestionamentos em um trecho viário é importante que se evite circular nos horários em que os trechos estão mais carregados, procurando as melhores condições climáticas de iluminação e visibilidade possível.
Referência em temáticas ligadas ao trânsito, Félix é observador certificado do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) e aponta cinco possíveis soluções para o problema:
- Melhoria na infraestrutura: na maioria das vezes é possível investir na qualificação viária com melhoria do pavimento e nos parâmetros geométricos (questões de projeto da pista, como largura das faixas, inclinação, visibilidade em curvas). Identificar e corrigir pontos críticos para aumentar a capacidade de tráfego.
- Implantar tecnologias e sistemas de monitoramento e gerenciamento de tráfego, fornecendo informações em tempo real, permitindo assim o controle, previsão e medidas de ajuste para evitar os congestionamentos.
- Investir em informações e comunicação em tempo real sobre as condições de tráfego por meio de aplicativos, websites, painéis informativos e campanhas de conscientização.
- Gestão e coordenação de obras e eventos para que não se tornem bloqueios em horários críticos.
- Uso de acostamentos ou faixas de vias de sentido contrário dependem de estudos aprofundados, modelagem e simulação de possibilidades e, se for o caso, com rigoroso controle com efetiva coordenação e sinalização, de forma a manter a segurança viária.
Por que o acostamento da freeway não é liberado com mais frequência?
A utilização ou não do acostamento da freeway como uma via alternativa em caso de fluxo acima da capacidade é definida pela PRF, em conjunto com a CCR ViaSul. Foi o que aconteceu no dia 1º de janeiro, por 45 minutos, mas não no dia seguinte.
— Veículos de pequeno porte, como carros e motos podem utilizar acostamento, se for previsto. A partir daí, a CCR faz uma varredura em todo trecho. Se não houver veículos estragados ou tráfego de pedestres, carroças ou ciclista nestes pontos, são ativadas as luzes piscantes que autorizam circulação motora por ali. Infelizmente, em caso contrário, o acostamento não é liberado — explica Laudson Viegas, do Núcleo de Comunicação da PRF, ressaltando que transitar nesta faixa sem liberação acarreta multa de R$ 880,41.
Apesar de ser um fator que colabora para reduzir pontos de lentidão, liberar o tráfego pelo acostamento é considerado pela PRF uma operação complexa, que exige o respeito a um protocolo para garantir a segurança das pessoas.
— Temos um grupo que trabalha com orientações e informações sobre como agir no trânsito, incluindo o uso do acostamento, um tema sempre muito questionado. Mas é bom lembrar que as placas na freeway são bem explicativas e intuitivas. Se as luzes piscantes estão desligadas, não precisa ter dúvida se pode utilizar ou não — reitera o policial rodoviário.
O engenheiro civil João Fortini Albano não é favorável à liberação recorrente do acostamento para aliviar o fluxo.
— Somente em último caso, como já ocorre. Há muitos problemas na mecânica de automóveis ou problemas de saúde de algum ocupante que obrigam o estacionamento no acostamento. Sentido único na freeway, muito menos. Se alguém precisar dos bombeiros ou ambulâncias no sentido contrário? — questiona.
O contrato de concessão da freeway à CCR ViaSul prevê construção de uma quarta faixa na rodovia entre os quilômetros 0 e 75, entre Gravataí e Osório, a partir do 13º ano de gestão, portanto, em 2031.
Decisão do motorista
Psicóloga especializada em uma linha comportamentalista, Marcia Straliotto lembra que a sociedade, em uma cultura atual que prima pelo bem-estar, está "desaprendendo a lidar com o mal-estar".
— As pessoas estão mais impacientes e sem saber como agir em situações desconfortáveis, que é da vida e o trânsito é assim: é possível planejar algumas coisas, mas outras saem do controle, como um acidente ou uma espera. É preciso regular essas emoções para não piorá-las.
Marcia exemplifica com a escolha de demorar em uma saída da praia, para "empurrar com a barriga" a frustração de enfrentar o fim do veraneio.
— É uma forma de evitar o desconforto em curto prazo, mas se cria um problema para depois porque a pessoa fica horas no trânsito e se irrita. É uma tendência, tomar decisões sem muita racionalidade neste período do ano. Uma questão de funcionamento — explica a psicóloga.
Já que o ser humano costuma recorrer à "recompensa de curto prazo", como ficar um pouco mais na praia antes do compromisso, Marcia indica o início no hábito do planejamento estratégico nas escolhas, de modo geral.
— É uma decisão que terá um custo lá adiante e será preciso lidar com ele. Não teremos pista livre a qualquer hora que quisermos.
Os impactos da pandemia, segundo ela, também interferem neste fenômeno, influenciando no comportamento dos veranistas que precisam voltar à "vida real".
— Fica aquela sensação de aproveitar o máximo possível, com certeza, uma repercussão deste período que passamos, na forma como organizamos as coisas — pontua Marcia.
Saturação antiga
Inaugurada há 50 anos, a freeway já passou por expansões estruturais que acompanharam as mudanças da própria sociedade, cada vez mais usuária de veículos. Inicialmente, construída para duas pistas nos dois sentidos, em 2004, estava com uma terceira faixa em obras e uma quarta planejada prevista para três anos depois.
Na volta do Réveillon daquele ano, no domingo de 4 de janeiro, o maior pico no fluxo da rodovia ocorreu por volta das 20h, 92 carros por minuto, como relatou reportagem de Zero Hora na edição do dia seguinte. Na véspera daquele Ano-Novo, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), circularam pela freeway 52 mil veículos, na época, quase o dobro da capacidade da rodovia.
Já então a PRF cogitava, sem a concordância da ANTT, que se liberasse o tráfego nos pedágios de Gravataí e Santo Antônio da Patrulha em momentos de maior saturação.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.