Processo em desenvolvimento no mundo todo, a fabricação de proteína com sabor e textura semelhantes à carne sem abater nenhum animal também têm exemplos no sul do Brasil. Essas iniciativas, junto às companhias que produzem carne à base de plantas, fazem parte de um movimento que vem ganhando força nos últimos anos: a busca por produtos alternativos àqueles que são de origem animal.
Diferentes empresas já se dedicam ao desenvolvimento desses alimentos em laboratório, utilizando apenas as células dos animais — são as chamadas "carnes cultivadas". GZH buscou histórias de empresas e startups que estão investindo nessa área no RS e em Santa Catarina.
A startup Eat Just foi a primeira a receber autorização para comercializar uma "carne de frango" cultivada em um restaurante de Singapura, em 2020. Já em novembro de 2022, a Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, avaliou o consumo do alimento produzido em laboratório como seguro para alimentação humana e, em junho deste ano, o Departamento de Agricultura daquele país autorizou duas empresas a venderem esse tipo de produto. Mas não demorou para que esse tipo de desenvolvimento chegasse por aqui.
No Brasil, ainda não há comercialização de carne de laboratório. Os projetos relacionados ainda estão em fases iniciais, comentam os especialistas, mas há grandes empresas investindo na produção. É o caso da JBS, que iniciou, em setembro, as obras para a construção do JBS Biotech Innovation Center — um centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação em proteína cultivada, com investimento total de US$ 62 milhões e inauguração prevista para o final de 2024.
O empreendimento ficará localizado dentro de um parque de inovação em Florianópolis e terá como objetivo inicial tornar o processo produtivo da proteína cultivada mais eficiente, escalável e economicamente competitivo. A equipe de pesquisadores já iniciou suas atividades em instalações temporárias no local e, atualmente, o foco dos estudos está no entendimento das células bovinas, por meio de pesquisas exploratórias. O alimento produzido pela empresa deve chegar aos consumidores inicialmente imitando a forma de hambúrgueres, embutidos e almôndegas.
Também em Santa Catarina, a Embrapa Suínos e Aves trabalha no desenvolvimento de uma carne de frango cultivada, a partir de células extraídas do ovo embrionado. A ideia da entidade é obter um produto estruturado, em formato de filés, semelhante ao sassami. Por isso, desde a apresentação do protótipo, em janeiro deste ano, a equipe vinha trabalhando na elaboração de uma estrutura para o alimento.
— Começamos fazendo essa estrutura à base de nanocelulose. O que tínhamos que fazer era a modificação da celulose para que as células se aderissem e penetrassem esse suporte estruturado. Agora, nós temos a estrutura com as células dentro, mas até conseguir esse formato de filé levou mais um ano e meio de estudo — comenta Vivian Feddern, engenheira de alimentos e pesquisadora da Embrapa.
Neste momento, a pesquisa da entidade está na etapa de caracterização das células, o que envolve, por exemplo, o tempo em que ficam se multiplicando dentro da estrutura. Após aprimorar o material, é preciso fazer a composição nutricional, de uma forma que o resultado se aproxime ao máximo do frango que está disponível nos supermercados. A intenção, segundo Vivian, é ter o produto pronto para análises nutricionais e sensoriais até o final deste ano.
No Rio Grande do Sul, um protótipo de hambúrguer de "carne" bovina cultivada foi desenvolvido no laboratório de uma startup, em parceria com o Instituto Tecnológico em Alimentos para a Saúde da Unisinos (itt Nutrifor). Hoje, a empresa se chama Cellva e tem um novo projeto: a criação de gordura usando só células suínas.
— O resultado do primeiro protótipo de carne bovina foi ótimo, mas observamos que a questão da gordura de qualidade, que entrega sabor e performance, estava em falta no mercado. Por isso, mudamos o foco para o desenvolvimento de gordura cultivada. Produzimos ainda em pequena quantidade, cerca de 20 gramas por lote, mas já testamos em uma salsicha vegana e fizemos degustações — relata Bibiana Matte, fundadora e líder de desenvolvimento tecnológico da Cellva, destacando que a gordura também tem uma grande importância no sabor dos alimentos, incluindo a carne cultivada.
A estrutura administrativa da empresa fica em São Paulo, enquanto a parte de desenvolvimento de pesquisa e produção ocorre em um laboratório na zona norte de Porto Alegre. O processo de elaboração da gordura segue a mesma premissa da carne cultivada, explica a especialista: a matéria-prima são as células suínas, que foram coletadas do porco por meio de um procedimento parecido com uma biópsia.
— Em vez de as células crescerem dentro do animal, crescem em um ambiente controlado. Vamos dar comida para essas células, e elas serão capazes de se multiplicar. A produção leva cerca de 21 dias. E o ponto positivo é que não fazemos recoletas: coletamos uma vez e, a partir disso, conseguimos criar um banco de células e seguir fazendo todo o processo — diz Bibiana.
No laboratório, as células ficam dentro de recipientes, que contêm o meio de cultivo (um líquido com vitaminas e nutrientes necessários para que se desenvolvam). Esses frascos são deixados em uma estufa que pode ser regulada conforme a temperatura corporal do animal de origem — cerca de 37°C. Nesse ambiente, as células se multiplicam até formar uma massa de gordura.
De acordo com a fundadora da Cellva, a equipe desenvolveu uma tecnologia para que o material se estruture e fique parecendo com o produto que é conhecido pela população. Bibiana enfatiza, contudo, que ainda não há comercialização e que o pedido de regulamentação deve ser enviado à Anvisa somente no próximo ano.
Toda a gordura produzida pela empresa vai para o Nutrifor, onde são feitos os testes. Valmor Ziegler, coordenador do instituto da Unisinos, aponta que, até agora, o que se sabe é que o produto tem um perfil de ácidos graxos que se assemelham àqueles que são de origem animal. O resultado foi indicado por uma análise cromatográfica, onde é possível fazer a separação dos ácidos, a fim de verificar se a composição da gordura é semelhante à "tradicional":
— O perfil completo de aminoácidos é justamente o que estamos estudando agora. Espera-se que seja possível modular o perfil de ácido graxo para que se tenha mais ácidos benéficos para a saúde. Isso seria algo ajustável no processo de produção da gordura, mas ainda é apenas uma hipótese. Temos que seguir no processo de ajuste da produção para encontrar a melhor composição.
Alimentos à base de plantas
Outra alternativa, que já está bem mais consolidada no Brasil e não se resume só à substituição da carne, é a produção de alimentos à base de plantas. O próprio Nutrifor já desenvolveu receitas encomendadas por empresas — entre elas, alimentos que lembram hambúrgueres, almôndegas e camarões e são feitos só com vegetais. O desafio é obter textura e sabor semelhantes à carne de origem animal.
Criada em 2017, em formato de restaurante na Capital, a Urban Farmcy é uma das startups que desenvolveram receitas com o apoio da Unisinos. A marca oferece opções à base de plantas pouco processadas, relata o sócio Tobias Chanan:
— Buscamos o processamento mínimo, sempre mantendo as plantas em seu formato mais íntegro. Criamos releituras de pratos conhecidos com menos impacto ambiental. Com isso, fomos engajando uma comunidade de não veganos e não vegetarianos, que são mais de 70% das pessoas que consomem nossos produtos.
Em 2021, o restaurante foi transformado em e-commerce e os pratos viraram opções congeladas, que são vendidas pela internet e em supermercados de diferentes cidades brasileiras. Completa Chanan:
— A tecnologia está presente, porque para fazer "carne" a partir de plantas tem que encontrar uma forma de obter a textura, a cor e o sabor parecido com o da carne de origem animal. O grande desafio é fazer isso sem ultraprocessar.
Em Farroupilha, na Serra, também há uma fábrica que produz alimentos análogos a hambúrgueres, empanados, salsichas e nuggets a partir de plantas. Na Tensei, o foco é proporcionar uma alimentação sustentável e inclusiva, portanto, a empresa não usa nenhum ingrediente alergênico e trabalha com matéria-prima orgânica.
O veterinário Thiago Guerra Diniz conta que ele e a esposa, Caroline Duso Diniz, compraram a fábrica em 2017. Eles conhecem a maior parte dos produtores que fornecem os vegetais. Além disso, afirma que 70% da matéria-prima vem daquilo que não é vendido para o varejo e teria como destino o desperdício ou a alimentação de animais:
— Compramos antes que isso aconteça, então não tem desperdício. Conseguimos uma matéria-prima ótima, só não é bonita. Assim, conseguimos levar para o consumidor final uma alimentação saudável, por um preço acessível.
A pequena fábrica conta com dois colaboradores, além do casal. O espaço tem capacidade para produzir 15 toneladas por mês e possui energia solar e uma composteira.
O RS e as foodtechs
Foi a partir de uma união entre poder público, instituições de ensino e empresas privadas que o Rio Grande do Sul começou a integrar o movimento das foodtechs. E o fato de haver universidades de excelência no território gaúcho atuando no tema é um dos pontos mais importantes na avaliação da secretária estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sict), Simone Stülp.
A existência de parques tecnológicos e incubadoras em que startups do ramo dos alimentos vêm se desenvolvendo com mais profundidade também é destacada pela secretária, assim como a estruturação de políticas públicas que colaboram com o movimento.
— Precisamos ter o conhecimento como base na construção dessas startups. E temos uma produção de conhecimento sólida já, além de grupos de referência nas áreas de biotecnologia e engenharia. Outro elemento que nos diferencia é que temos a tradição de ser um Estado referência na produção de alimentos e na transformação desses alimentos produzidos — comenta Simone.
Ela também ressalta o lançamento da RS FoodTech Alliance, durante o South Summit Brasil 2022, em Porto Alegre. Essa aliança entre o governo estadual, universidades e empresas tem como objetivo tornar o Rio Grande do Sul um polo de excelência quando o assunto é inovação em sistemas alimentares. Desde então, diversas reuniões já foram realizadas para discutir os avanços e necessidades da área.
Neste ano, durante a Expointer, também foi feita a assinatura de um protocolo de intenções entre o governo do Estado e o Mapa. Simone relata que esteve em Brasília no final de setembro para discutir as ações que serão desenvolvidas a partir dessa iniciativa. Segundo ela, um tema bastante tocado foi a produção de proteínas alternativas:
— Tenho visto um movimento das empresas de médio e grande porte, que são da área mais tradicional, buscando soluções envolvendo a proteína vegetal. É um terreno bastante fértil, que nos provoca a pensar. O que visamos como secretaria é articular essa aproximação entre universidades e empresas para gerar novas tecnologias e modificações de processos, ou seja, para que a inovação definitivamente aconteça.
Conforme a secretária, as empresas que trabalham com proteínas de origem animal têm visto esse movimento muito mais como uma oportunidade do que como uma ameaça, reforçando a visão dos especialistas ouvidos pela reportagem.
— Estamos em crescente aumento populacional e a tendência é não conseguirmos dar conta de atender o consumo de proteína. Não vejo como mercados competitivos, pois não é uma substituição, mas sim uma complementação para atender as pessoas. A discussão é muito mais ampla no sentido de ter diferentes tecnologias que permitam melhor qualidade de vida e que todos tenham proteínas disponíveis — afirma Simone.