Os brinquedos que compuseram a infância de Simone Pires, 40 anos, foram guardados com carinho pela mãe da analista de TI. Ela cresceu esperando pelo momento em que compartilharia com o futuro filho as memórias de um tempo especial. Contudo, as estimadas lembranças se perderam em um incêndio que consumiu a casa de sua mãe em 2014. Apesar disso, Simone não desanimou na tentativa de apresentar ao filho um pedaço importante de sua história.
— Comprei, aos poucos, quase todos os brinquedos que eu tinha na infância para ele. E adoramos jogar — conta a moradora de Sapucaia do Sul e mãe de Erick, nove anos.
Assim como Simone, muitos pais aproveitam a infância dos filhos para rememorar esse período especial de suas próprias vidas: recriam as brincadeiras que os embalavam quando pequenos, investindo em brinquedos que tinham – ou queriam ter – para compartilhar experiências com os descendentes.
A convite de GZH para o Dia das Crianças, celebrado nesta quinta-feira (12), leitores do jornal compartilharam suas histórias envolvendo os brinquedos afetivos com os quais já presentearam os filhos. Mais de uma dezena de relatos menciona bonecas, cozinhas, pernas de pau, pogobol, jogos de tabuleiro, pebolim, Hot Wheels, peões, Sylvanian Families, Barbie, videogames antigos – itens especiais que compõem a memória de gerações passadas.
No caso de Simone, sua casa é repleta de brinquedos e jogos como Pinote, Contra o Tempo, Twister (um desejo antigo), Nintendo 64, Cilada, Pega Ladrão, entre outros que dividem espaço com lançamentos atuais.
— É bem legal, ela adorava, e eu também adoro os jogos. São diferentes. Algumas vezes eu gosto de jogar aqui nos joguinhos e algumas vezes na internet — conta Erick, que tem preferência pelo Pula Macaco, minigame antigo e jogo da pescaria.
Alguns adultos tentam, por meio dos filhos, realizar desejos que não conseguiram concretizar na própria infância, devido a situações como falta de oportunidade ou de condições financeiras. Edward Heckler, 50 anos, comprou um Forte Apache, que tinha quando criança, ao descobrir que seria pai de Otávio, agora um adolescente de 16 anos. O advogado de Porto Alegre também decidiu investir em outros brinquedos:
— Eu tinha um sonho de ter um ferrorama e um autorama. Não tive. Quando minha ex-esposa ficou grávida e eu soube que era um menino, pensei: ele vai ter um Forte Apache e eu vou querer realizar meu sonho com ele. Então providenciei um autorama e um ferrorama para que eu pudesse realizar meu sonho de criança junto com meu filho, nós dois brincando juntos.
A sacada da indústria
Cientes desse cenário, fabricantes de brinquedos têm relançado produtos que fizeram sucesso em décadas passadas. Uma das marcas mais tradicionais do Brasil, a Brinquedos Estrela relançou coleções como Moranguinho, Ursinhos Carinhosos, Fofolete, além de itens como Pogobol, autorama clássico e ferrorama.
Nas avaliações dos produtos na internet, multiplicam-se os exemplos de pessoas afirmando que compraram para recordar da infância ou presentear familiares. A servidora pública Elisa Cunha, 41 anos, adquiriu o relançamento do Carrinho de Nuvem dos Ursinhos Carinhosos para o aniversário de dois anos de sua filha, Alice.
No caso de brinquedos antigos, há uma construção de significado ali já presente nesses produtos quando foram lançados no passado que talvez se some à saudade de "tempos mais simples" e traga benefícios às marcas
GUSTAVO FISCHER
Professor dos programas de pós-graduação em Comunicação e Design da Unisinos
— Que nostalgia... Lembrei do quarto lindo que eu tive o privilégio de ter quando criança: colcha, almofadas e cortinas combinando, com estampa de coraçõezinhos, que minha mãe encomendou da vizinha do bairro e, na parede, prateleiras feitas pelo meu pai, cheias de brinquedos. Um deles era o carrinho de nuvem dos Ursinhos Carinhosos, que eu adorava — recorda a moradora de Gravataí.
Esse movimento por parte dos adultos já acontece há algum tempo, mas foi impulsionado pela pandemia, quando tiveram de reaprender a brincar com as crianças em casa, conforme Aires Fernandes, diretor de Marketing da Estrela. Além disso, é fortemente calcado nos millennials, que hoje ocupam postos de trabalho e têm poder aquisitivo. Nesse sentido, há questões ligadas ainda a mudanças de perfil: hoje muitos jovens vivem sozinhos; as famílias diminuíram; os relacionamentos já não são tão tradicionais; e os adultos se preocupam mais com o prazer pessoal do que com bens como casa e carro.
Nas redes sociais da empresa, chovem pedidos de relançamento de produtos. A central de atendimento ao cliente recebe, em média, mais de mil contatos por mês – e grande parte são solicitações pela volta de produtos.
— É um novo mercado que se abre. Existem adultos que não só direcionam brinquedos para as suas crianças, mas compram para si mesmos, há um grande número de colecionadores e consumidores de brinquedos — complementa.
Há estimativas de que o mercado de brinquedos para "kidults" (adultos que consomem produtos que remetem à infância) já movimente mais de US$ 1 bilhão (na cotação atual, mais de R$ 5,5 bilhões) pelo mundo, segundo Fernandes. Agora, esse cenário integra também a estratégia de lançamentos de produtos da Estrela – e aqueles recolocados no mercado têm sido um grande sucesso.
Versões atualizadas
Outra prática é a introdução de tecnologia em produtos que nunca saem de linha, buscando inovações, por exemplo, no Banco Imobiliário, com realidade aumentada e uso de aplicativo – subterfúgios para garantir um novo encantamento a itens clássicos, visando despertar o interesse de novas gerações, mais envolvidas com tecnologia.
Nessa iniciativa de repaginar brinquedos que tradicionalmente estão nas casas das famílias brasileiras, a empresa gaúcha Xalingo investiu em novidades – o Brincando de Engenheiro, seu produto clássico composto por blocos de madeira, ganhou novas versões, com temática de selva, cidades e Homem-Aranha. As atualizações foram um sucesso e conseguiram ampliar ainda mais as vendas.
— Foi uma maneira de mostrar aos pais também que eles não precisavam dar só os brinquedos que eles tinham, mas mais algumas coisas que existem hoje em dia, que foram mudando — explica Rodrigo Harsteln, diretor-presidente da Xalingo.
Ele lembra que os brinquedos e jogos tradicionais mantêm uma venda boa e constante – o que também atribui à identificação emocional dos pais com os produtos.
— Os pais de hoje em dia, e falo por mim, sou pai de três crianças, ao vê-las cada vez mais acessando coisas digitais, celular, vídeos na internet, tentam interagir com eles. E usamos como ferramenta o que nos divertiu na infância, para tentar estimular o convívio e tirar um pouco do mundo digital — acrescenta.
O fenômeno da nostalgia
Existe uma dualidade atualmente, conforme Gustavo Fischer, professor dos programas de pós-graduação em Comunicação e Design da Unisinos que trabalha com memória das mídias: de um lado, há um conjunto de brinquedos atrelado às últimas novidades tecnológicas, mas, de outro, uma espécie de força oposta que busca retomar práticas do brincar que possam tentar construir pontes entre as gerações.
O professor considera que, em alguns casos, as marcas podem estar se amparando em pesquisas de tendências que possam estar indicando alguma necessidade de redução de telas na vida das crianças, o que acontece ao mesmo tempo em que as pessoas tentam redescobrir as relações presenciais após o auge da pandemia. Ele cita ainda a possibilidade de conversações sobre brinquedos "da mesma época da Barbie" em função do lançamento do filme. O fenômeno da nostalgia também tem se tornado cada vez mais presente e central para entender o momento atual.
— A nostalgia deixou de ser um sentimento "interno" (saudade de um tempo que passou) e passou a exteriorizar-se por meio das inúmeras referências que a cultura pop oferece, na medida em que, por vezes, há uma "aposta segura" em remakes de filmes e séries ou a transformação de personagens clássicos de quadrinhos ou brinquedos em filmes, jogos ou séries — ressalta.
Nas redes sociais, multiplicam-se vídeos de séries, programas e filmes de décadas anteriores e de produtos como brinquedos que remetem a períodos de infância ou juventude das gerações atuais.
— No caso de brinquedos antigos, há uma construção de significado ali já presente nesses produtos quando foram lançados no passado que talvez se some à saudade de "tempos mais simples" e traga benefícios às marcas em tempos de competição acirrada — sustenta Fischer.
Cuidado com a frustração
Na visão da psicóloga e psicanalista Cristina Herbstrith, o resgate dessa lembrança tem a ver com uma memória de alegria e prazer. Ela ressalta que é comum querer repetir essa sensação por meio dos filhos. Perceber que as crianças também se divertem com aquela brincadeira – muitas vezes passada de geração a geração – pode potencializar a felicidade desses momentos de interação. Além disso, o significado dessa "herança" se torna especial, gerando orgulho e satisfação.
A psicóloga ressalva, porém, que é importante que os adultos percebam o quanto o desejo por uma brincadeira é deles próprios ou da criança. Isso para não resultar em frustração se o filho não demonstrar interesse.
— O mais importante é encontrar brinquedos ou jogos em que a troca seja leve e fluida, em que adultos e crianças aprendam alguma coisa que vai além do brinquedo em si. E se os filhos não se empolgarem com as ideias dos pais, nada impede que os adultos tenham os próprios brinquedos, caso isso desperte bons sentimentos. Porque, no fundo, a gente sabe que a nossa "versão criança" está em algum lugar, querendo se divertir — aconselha.