A ideia de comer uma proteína com sabor e textura semelhantes à carne sem abater nenhum animal no processo parece distante, mas já ocorre em alguns países e, no Brasil, pode se tornar realidade nos próximos anos. Isso porque diferentes empresas já se dedicam ao desenvolvimento desses alimentos em laboratório, utilizando apenas as células dos animais — são as chamadas "carnes cultivadas".
Essas iniciativas, junto às companhias que produzem carne à base de plantas, fazem parte de um movimento que vem ganhando força no país nas últimas décadas: a busca por produtos alternativos àqueles que são de origem animal.
A produção de carne cultivada ainda não é regulamentada pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) nem pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Essa etapa é fundamental para que haja produção em grande escala e posterior comercialização. Mas, apesar dos avanços esperados para os próximos anos, os pesquisadores da área são unânimes: os produtos alternativos não têm como objetivo o fim da pecuária ou do consumo de itens de origem animal.
Juliano Barin, professor do Departamento de Tecnologia e Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), explica que esse movimento está inserido no contexto das foodtechs, ou seja, empresas que utilizam a tecnologia para ressignificar os sistemas alimentares por meio de inovações na produção, processamento, distribuição, comercialização, consumo e descarte de alimentos.
— Existem as agtechs, que são ligadas à agricultura e à pecuária, e as foodtechs, que pegam o processo pós-produção primária. No Brasil e no Rio Grande do Sul, o segmento agritech está mais desenvolvido. No ramo das foodtechs, há empresas já consolidadas, mas vinculamos o termo mais às startups, porque está relacionado às inovações nos processos — esclarece o agente de inovação do FoodTech FabLab, que integra o InovaTec, parque tecnológico da UFSM.
Como exemplos de foodtechs, Barin cita empresas que desenvolvem ingredientes para implementar em determinadas comidas, elaboram uma forma inovadora para distribuir os produtos ou criam novos alimentos utilizando tecnologia e equipamentos específicos — é nessa última alternativa que se encaixa a carne de laboratório, ele esclarece:
— Na produção da carne cultivada, o que se faz é basicamente imitar o processo de geração do tecido em laboratório. As células dos animais são extraídas e colocadas em um biorreator, que simula as condições biológicas para que se desenvolvam. Dentro desse biorreator, forma-se a "carne", que pode ser consumida.
O que é a "superciclagem" de alimentos
Há também iniciativas que buscam reduzir o desperdício — conforme o professor, cerca de um terço de todos os alimentos produzidos não é consumido. Um projeto de pesquisa coordenado por ele, em parceria com a doutoranda Angélica Kaufmann, tem como foco justamente a "superciclagem" de sobras de alimentos. Esse termo significa reaproveitar um resíduo e agregar valor ao material.
Durante o experimento, os pesquisadores envolvidos utilizam cascas de laranja coletadas no restaurante da UFSM para a confecção de chocolate. A receita inclui o resíduo previamente seco e moído e chocolate branco. A mistura é levada para uma impressora, resultando em alimentos impressos em 3D, em diferentes formatos — a mesma técnica pode ser utilizada com a "carne" cultivada, para deixá-la em forma de bife, por exemplo.
Busca por fontes alternativas de produção de alimentos e por menor impacto ambiental estão entre os fatores para este movimento. De acordo com Marcia Dutra de Barcellos, professora do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora sênior da Universidade de Ghent, na Bélgica, o problema está associado à criação de bovinos, que emitem metano, um dos principais gases do efeito estufa.
A especialista explica que se trata de um gás produzido naturalmente por esses animais, que são ruminantes. O bovino pasta e o alimento é processado pelo aparelho digestivo, com o auxílio de microrganismos, gerando o metano, que é eliminado no ambiente por meio do arroto ou de dejetos.
A produção de qualquer alimento impacta o meio ambiente, mas estamos buscando usar a tecnologia para reduzir ou eliminar esse impacto.
JULIANO BARIN
PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIA DOS ALIMENTOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
— No Brasil, a pecuária tem um impacto social, econômico e cultural importante, mas também há o impacto ambiental. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que a pecuária contribua com 11% a 15% das emissões globais de gases de efeito estufa — afirma a professora da UFRGS.
Para Márcia, o Brasil fica bastante em evidência nesse tema devido ao desmatamento da Amazônia e ao fato de ter uma pecuária altamente competitiva internacionalmente, com grande volume de produção e um rebanho com 230 milhões de bovinos. De toda forma, o agente de inovação do FoodTech FabLab enfatiza que a produção de "carne" em laboratório não vai acabar com a pecuária, sendo apenas mais uma alternativa para fornecer as proteínas necessárias à população.
— A produção de qualquer alimento impacta o meio ambiente, mas estamos buscando usar a tecnologia para reduzir ou eliminar esse impacto. No futuro, teremos que ter dietas mais sustentáveis, porque a produção de alimentos tem que ser saudável para as pessoas e para o planeta — diz Barin.
Márcia aponta que os avanços tecnológicos e digitais impulsionaram o movimento de diversas formas, desde a disseminação de informações e tendências até o aumento da atratividade dos produtos, sejam à base de plantas ou análogos à carne.
Consultor técnico da Federação da Agricultura e Pecuária do Rio Grande do Sul (Farsul), José Fernando Piva Lobato pondera que carne de laboratório não pode ser considerada carne:
— São produtos que querem almejar as benesses da carne verdadeira. Alguém quer imitá-la e ganhar dinheiro com isso. Prefiro preservar os produtores brasileiros, que oferecem algo saudável recomendado pela classe médica. Esses produtos (de laboratório) são ultraprocessados e mais caros.
Além de não endossar o uso alimentar, Lobato rechaça a ideia de que a produção da carne seja inimiga da preservação ambiental:
— Esse apelo ambiental desconhece sistemas de produção.
Tecnologia é cara
O preço da tecnologia e a falta de regulamentação por parte dos órgãos oficiais são os dois principais entraves da carne cultivada. Apesar dos diversos projetos desenvolvidos pelo mundo, nenhuma empresa produz o alimento em grande escala por enquanto, mas a expectativa é de que isso avance nos próximos anos.
— A questão do cultivo de células é complexa, e a tecnologia não está madura ainda, estamos em processo de desenvolvimento. Em Israel, tem um restaurante que já serve um hambúrguer com essa "carne", mas custa mais de US$ 100, porque a tecnologia ainda é muito cara. Não tem nenhum grande produtor no mundo por enquanto, todos produzem em pequena escala — afirma Juliano Barin.
Para Marcia Dutra de Barcellos, o fato de JBS e BRF estarem investindo na carne cultivada reforça a ideia de que há espaço para o produto no mercado, principalmente pelo aumento da demanda por alimentos sustentáveis no mundo, em função da parcela da população que está refletindo cada vez mais sobre o que consome e o impacto de suas escolhas. A professora concorda, contudo, que a produção ainda é muito cara e acredita que deve levar cerca de cinco anos até que se torne algo mais popular.
— É um momento de muita inovação e um mercado que vem crescendo, mas a carne cultivada provavelmente terá mais sucesso quando conseguirem gastar menos energia na produção. Por enquanto, precisa de biorreatores funcionando 24 horas por dia para manter as células vivas. A produção ocupa menos terra e gasta menos água, não tem emissão de metano, mas tem produção significativa de dióxido de carbono, que é outro gás do efeito estufa — pontua Márcia, acrescentando que uma forma de reduzir o custo seria utilizar energia renovável no processo de produção.
Em nota enviada à reportagem, o Mapa informou que já participou de reuniões que abordavam o assunto com a Anvisa. Mas ressaltou que a aprovação da produção e comercialização passa por uma avaliação da agência sobre a segurança do consumo, para uma posterior avaliação técnica do sistema de fabricação.
São produtos que querem almejar as benesses da carne verdadeira. Alguém quer imitá-la e ganhar dinheiro com isso.
JOSÉ FERNANDO PIVA LOBATO
Consultor técnico da Farsul
Questionada, a Anvisa disse, também por meio de nota, que até o momento não houve pedidos de avaliação para carnes cultivadas em laboratório e alimentos impressos em 3D. A agência esclareceu que o tempo médio de análise efetiva de novos alimentos e ingredientes é de 70 dias, mas que o prazo total entre o pedido e a decisão pode levar mais tempo, em razão da alta demanda. Informou ainda que, em geral, as avaliações consideram decisões de autoridades estrangeiras, "desde que estas apliquem o mesmo rigor da Anvisa e que tenham decisões públicas e bem fundamentadas".
O texto da agência destacou também que, após a aprovação da segurança, os produtos são submetidos aos mesmos controles que os demais alimentos, que envolvem a regularização do produto e da empresa.
Sem estudos sobre impactos
Apontar as características nutricionais e o impacto da carne cultivada em laboratório na saúde humana ainda é difícil, devido à escassez de evidências, afirma a nutricionista e professora da Unisinos Bruna Pontin. Isso ocorre principalmente porque ainda não estão publicados na literatura científica estudos com esses produtos.
— Precisaremos de um tempo até que os resultados da ciência venham à tona. Isso sempre ocorre no mundo da nutrição: precisamos de estudos com muitas pessoas, um consumo regular, então, leva tempo — explica.
Já em relação aos produtos à base de plantas, o cenário é diferente. Existem evidências de que a composição desses alimentos melhorou muito nos últimos anos. Isso os deixa nutricionalmente bem mais próximos àqueles de origem animal. Bruna destaca que, agora, esses produtos têm um rótulo muito mais limpo, ou seja, com menos ingredientes artificiais:
— Antes, eles vinham com mais ingredientes e realçadores de sabor artificiais. Hoje, algumas marcas usam um aroma natural de frango, por exemplo, além de especiarias para realçar o sabor e um antioxidante natural para conservar os alimentos. Limparam o rótulo e colocaram ingredientes mais naturais, deixando os produtos mais nutritivos e com um teor de proteína semelhante aos alimentos de origem animal.
Bruna considera que os produtos à base de plantas são grandes aliados daqueles que optam por não consumir proteína animal, mas ressalta que é fundamental combinar as fontes de nutrientes para que se consiga atingir a quantidade e a qualidade necessárias de aminoácidos, que são importantes para o metabolismo humano. Também aponta a necessidade de que essas pessoas busquem orientação especializada para elaborar uma dieta que permita a manutenção da saúde.
Além disso, ressalta que as "carnes" à base de plantas são consideradas ultraprocessados, então, devem ser ingeridas com moderação.