Samuel Marques Gomes tem cerca de duas horas diárias para interagir com os amigos, construir ambientes, comprar itens e participar de eventos. Tudo isso sem sair de casa. Aos dez anos, ele está mais do que familiarizado com jogos digitais online como o Fortnite, o Minecraft e o Roblox. Já Bruno Celidonio, 42, não costuma jogar nenhum desses games. Mas, todos os dias, acessa o escritório virtual da empresa onde trabalha, a Russell Bedford, para fazer reuniões e conversar com os colegas. Apesar das diferenças entre as atividades, todas são desenvolvidas no metaverso.
Definido como um mundo virtual imersivo e compartilhado, que pretende replicar a realidade por meio de dispositivos digitais, o termo ganhou destaque a partir outubro de 2021, quando o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou que o nome de sua empresa — que reúne outros aplicativos como o Instagram e o WhatsApp — havia mudado para Meta. O objetivo da reformulação da marca seria demonstrar o foco da empresa no desenvolvimento do metaverso. Por este motivo, algumas pessoas acreditam que a palavra tenha relação direta com a companhia. O termo, porém, é mais antigo: foi citado pela primeira vez no livro de ficção científica Snow Crash (Nevasca), escrito por Neal Stephenson, em 1992.
Atualmente, o metaverso está sendo construído, mas já é possível acessá-lo por meio de determinadas plataformas. As mais populares são as de jogos digitais. A ideia é que, no futuro, todos os ambientes que já existem e aqueles que ainda serão criados estejam interligados em um único universo, onde as pessoas possam existir a partir de seus avatares que, além de interagir, serão capazes de realizar atividades da vida real, como trabalhar, passear, construir e comprar.
Gustavo Schifino, diretor de transformação digital do Grupo 4all, analisa que o metaverso é um ambiente constituído pela soma de duas tecnologias: a internet e a realidade virtual ou a realidade aumentada. Sendo assim, é maior e mais imersivo do que a experiência virtual que existe hoje, pois permite uma nova forma de socializar e interagir.
— Qualquer pessoa que esteja dentro de um game já está em um ambiente de metaverso. Esses jogos são hoje a melhor forma de explicar para as pessoas qual é o conceito, mas o caminho também é bem mais amplo, estamos recém começando a ver tudo que vai surgir em cima desse universo virtual — afirma.
Crianças no metaverso
O público atual do metaverso, segundo Schifino, é formado principalmente pelas gerações Z (nascidos entre 1995 e 2010) e Alfa (nascidos após 2010), que representam grande parte dos usuários de games e são compostas por crianças, adolescentes e adultos jovens, os chamados "nativos digitais". Ele destaca que esses jogos fazem com que os integrantes queiram estar cada vez mais preparados, com avatares melhores e com maior quantidade de skins (acessórios que personalizam o avatar).
Por isso, pessoas com filhos menores de 15 anos certamente já gastaram dinheiro ou ao menos receberam pedidos de compras virtuais — algo que acontece com frequência na casa de Semadar Jardim Marques, mãe de Samuel Marques Gomes. A funcionária pública e escritora de 41 anos conta que o filho costuma pedir as v-bucks, moedas que servem para comprar itens no Fortnite, de presente. Foi preciso estabelecer alguns limites:
— Tento fazê-lo entender que não pode comprar toda hora, mas tem uma questão muito forte no jogo que estimula isso com frequência. Existe uma comparação entre as skins dos avatares, que gera uma pressão se for inferior à do outro usuário. Conversamos muito, até porque gerava ansiedade nele o fato de querer comprar o tempo todo.
Samuel entrou no universo dos games quando tinha sete anos, por meio do Minecraft. Depois, descobriu o Roblox e o Fortnite. Além de comprar skins, ele participa de eventos, como o show do avatar da Ariana Grande, lives, reuniões e até campeonatos dentro das plataformas. De acordo com Semadar, os jogos foram uma boa ajuda durante o auge da pandemia, porque possibilitaram que o filho interagisse com outras crianças e, assim, se sentisse menos solitário. Neste período, portanto, a regra relacionada ao tempo de conexão foi afrouxada.
Agora, devido ao retorno das aulas e a problemas de ansiedade, o menino só pode jogar por duas horas, no máximo, depois de terminar os deveres da escola. Além dessa norma, a mãe comenta que é preciso monitorar de perto com quem Samuel conversa durante o uso das plataformas, já que o acesso é permitido para pessoas de todas as idades — o que pode ser uma brecha para abusos. Já ocorreram situações em que ele foi xingado por outros usuários.
— Temos uma relação de confiança, tentamos não oprimir para que ele não tenha medo de nos contar o que acontece. Falamos sobre os prós e contras, explicamos o porquê das proibições, e ele entende. Também falamos sobre os perigos, pedimos para que nos acione se acontecer qualquer coisa diferente, mas temos que estar sempre observando — relata.
Para a funcionária pública, é preciso saber dosar, estabelecer regras e ficar atento à saúde mental das crianças, mas também se deve observar os pontos positivos, como a estimulação da agilidade mental, da interação e da paciência:
— A mentalidade deles é toda voltada para o digital, então não tem como voltar atrás, mas tem como tirar um saldo positivo. Tem que tentar conduzir de uma forma educativa e saudável, para que eles possam se divertir, mesmo entendendo os limites.
Cuidados necessários
Professor de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Alcyr Oliveira reforça que experiências virtuais podem reproduzir situações que causam medo e ansiedade, mas isso não significa que todas as crianças e adolescentes que as vivenciarem terão sua saúde mental afetada. Mesmo assim, é preciso evitar que eles frequentem ambientes perigosos ou nocivos, estabelecendo limites para quais locais podem ou não acessar. O especialista ressalta que, no mundo real, estabelecimentos com situações inapropriadas para menores devem, por lei, garantir que eles não os frequentem — algo que ainda não acontece em ambientes do metaverso, por exemplo.
— Então, são os pais que precisam fazer esse controle. Para isso, devem deixar claro um acordo com as crianças de que irão acessar suas sessões virtuais periodicamente. Ainda mais adequado é estar sempre presente e participando das atividades virtuais dos filhos — orienta.
Temos uma relação de confiança. [...] Falamos sobre os prós e contras, explicamos o porquê das proibições, e ele entende. Também falamos sobre os perigos, pedimos para que nos acione se acontecer qualquer coisa diferente, mas temos que estar sempre observando.
SEMADAR JARDIM MARQUES
Mãe de Samuel, de 10 anos
Conforme Oliveira, há inúmeros relatos de pessoas que, por se sentirem impunes ou invisíveis no mundo virtual, promovem e proliferam abusos raciais e sexuais, além de crimes e violências de forma geral. Por isso, é necessário permanecer atento, mas sem policiamentos exagerados ou proibições, que podem gerar ainda mais curiosidade na criança.
Na visão da psicóloga e psicanalista Fernanda Dornelles Hoff, membro da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, tudo que é experienciado de forma excessiva ao que o psicológico de uma criança ou adolescente dá conta pode ser considerado abusivo. Ela afirma que, se algo não puder ser compartilhado ou falado devido aos excessos, aparecerá em manifestações como o silêncio, a passividade e ações de descuido ou agressividade, seja com relação a si ou aos outros.
A especialista ainda aponta que riscos são reduzidos quando as experiências virtuais são uma derivação das vivências reais, sem o rompimento do contato com as pessoas que são referências psíquicas, como os pais ou responsáveis:
— Se houver espaço para que crianças, adolescentes e pais ou cuidadores realizem atividades conjuntas, desde sentarem juntos para refeições ou fazerem atividades caseiras e lúdicas, escutando uns aos outros, a virtualidade será um complemento à vida, e não o viver em si.
Empresas no metaverso
Diante da oportunidade de comercialização nesses novos ambientes virtuais, empresas de diferentes setores já estão operando, investindo ou estudando entrar no metaverso. É o caso da Ralph Lauren, que até janeiro deste ano já havia vendido cem mil peças por lá, da Nike, que criou um mundo chamado Nikeland dentro da plataforma de games Roblox para permitir que os usuários equipem seus avatares com produtos da marca em sua versão digital e interajam em jogos esportivos gratuitos, e da Lojas Renner, que inaugurou uma unidade dentro do Fortnite.
De acordo com Gustavo Schifino, diretor de transformação digital do Grupo 4all, escritórios virtuais são comuns nesse universo. A empresa de consultoria e contabilidade Russell Bedford, que no Brasil tem sede administrativa em Porto Alegre, montou um espaço virtual para reuniões de trabalho em janeiro e, até agora, o resultado tem sido positivo, afirma o gerente de marketing e de operações internacionais, Bruno Celidonio. A ideia de entrar no metaverso, informa, surgiu após a movimentação do Facebook e foi impulsionada pelo fato de que a empresa já estava operando majoritariamente de forma virtual, devido à pandemia de covid-19.
A plataforma escolhida foi a Gather e, após um teste interno de duas semanas, o ambiente digital foi adaptado e liberado para todos os colaboradores. O escritório permite que os funcionários criem e personalizem seus avatares, conversem com colegas de todas as regiões do Brasil de forma mais rápida e divertida, e participem de reuniões, palestras e treinamentos. Além disso, é possível enviar convites externos para encontros com clientes. O local conta com baias individuais, salas de reuniões, de espera e de recepção, espaços de convivência e até um auditório.
— O escritório virtual não substituiu o comunicador interno oficial da empresa ou as videochamadas pelo Teams, mas proporcionou um outro ambiente de trabalho, que não tínhamos nem noção de que poderia existir: mais gamificado e divertido. Então, não é a principal ferramenta, mas é uma que estamos usando bastante — diz Celidonio.
Para acessar a plataforma, os funcionários criam uma conta, enquanto visitantes externos, como clientes, precisam de um link de convite, que fica disponível por tempo limitado. Como a empresa ainda utiliza a versão gratuita da Gather, há limitação de acessos: no máximo 60 pessoas podem se conectar ao mesmo tempo. A fim de facilitar a compreensão do funcionamento, o gerente de marketing da Russell explica:
— Você anda com seu avatar como se fosse um videogame. Quando você está andando pelo escritório e encontra outra pessoa, automaticamente essa pessoa que está na sua frente já pode te escutar se você estiver com o microfone ligado. Se eu chamo colegas para fazer uma reunião dentro de uma sala, eu posso fazê-la por áudio ou eu posso abrir minha câmera, como se estivesse no Teams. Se eu sair da sala, paro de escutar e eles também, porque eu deixei de participar daquela conversa.
Celidonio afirma que a empresa está utilizando esse ambiente como uma forma de adaptação ao metaverso para que, futuramente, possa criar uma versão mais específica, talvez até migrando para uma plataforma paga e mais complexa, que permita o acesso simultâneo de todos os funcionários.