Depois de assistir às aulas remotas pela manhã e concluir as lições de casa à tarde, Samuel Marques Gomes, nove anos, assume a identidade de detetive. Com o celular em mãos, junta-se a outras nove crianças que compartilham as tarefas de uma espaçonave - cuidar dos motores, destruir asteroides, administrar a cafeteria ou consertar a fiação.
O problema é que sempre há pelo menos um impostor entre eles, que tenta estragar o trabalho de todos e colocar a viagem em risco. E o papel dos mocinhos é trocar informações e coletar provas que levem ao sabotador.
— O impostor consegue trancar jogadores em salas, se desloca pelas tubulações e estraga o trabalho dos outros. Aí, quando alguém começa a levantar suspeita, os outros já desconfiam — explica Samuel.
O game que virou o xodó de Samuel chama-se Among Us, um jogo multiplayer lançado em 2018 e que caiu no gosto dos jovens nos últimos meses. Até esta quarta-feira (4), o game tinha mais de 100 milhões de downloads gratuitos nos celulares, com avaliação de 4,5 no Google Play e de 3,6 na Apple Store. Também pode ser jogado pelo computador, mas aí é pago.
— Ele descobriu o Among Us assistindo aos youtubers jogarem e ficou vidrado. Gosta tanto que até desenha os personagens — conta a mãe de Samuel, a funcionária pública Semadar Marques.
A brincadeira do filho é um alívio, suspira: o game passa longe de ser violento, a competitividade é substituída pela colaboração e a agilidade dá lugar ao raciocínio.
— Ele antes jogava o Roblox, mas tem aquela dualidade entre polícia e ladrão, ou o Fortnite, que envolve batalhas. O Among Us é mais focado na diversão e na interação, passa uma mensagem mais positiva — compara a mãe.
Among Us é tão simples que parece extraído da quarta geração de consoles, nos anos 1980 e 1990. Os gráficos em duas dimensões lembram os jogos de Mega Drive e Supernintendo. Os comandos são básicos: setas direcionais e um botão para cumprir tarefas. O foco está na análise das pistas e na interação entre os personagens.
— O jogo é centrado na brincadeira e tem certo ar de galhofa que seduz a criançada — explica André Pase, professor de Comunicação Digital da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS).
O fato de poder ser jogado em partidas rápidas pelo celular ou pelo computador também dá flexibilidade para que os gamers se divirtam nos intervalos de outras tarefas.
— Além disso, as tarefas e a mecânica são muito simples, isso ajuda a nivelar os jogadores e manter o foco na investigação — diz Pase.
Pesquisadora em Psiquiatria da Infância na Universidade Federal do RS (UFRGS), Patrícia Bado avalia que a popularização de Among Us nos últimos meses pode estar associada ao distanciamento social, que dificulta a interação das crianças com colegas da escola, amigos ou familiares.
— O jogo tem um componente de socialização que é um caminho para se divertir de um jeito leve em meio ao isolamento. Não traz os mecanismos de recompensa e frustração de alguns outros games — avalia Patrícia.
A pesquisadora, que é autora de estudos sobre o uso de telas pelos jovens, explica que alguns jogos têm proposta de motivação extrínseca, em que o desafio é evoluir um personagem ou pular de fase. Oferecem o tipo de recompensa que pode estimular o vício e a jogatina mesmo quando o jogo deixa de ser divertido, levando a pessoa apenas a tentar superar determinados desafios.
O outro tipo de motivação que um game pode conter é a proposta intrínseca, em que o jogador está ali pelo mero divertimento, para passar o tempo independentemente de ser reconhecido ou colher recompensas.
— Este segundo tipo de motivação, que parece ser a proposta de Among Us, é o que torna algo prazeroso por si só. É uma forma de mudar de contexto, gerar boas sensações — sintetiza Patrícia.
Essa característica pode estar deixando os pais mais tranquilos para permitir a dedicação dos filhos e causando uma sensação de alívio nos jovens ante uma realidade pesada — o que, na avaliação dela, pode explicar o sucesso do jogo.
Sobre limite e tempo à frente das telas, a psiquiatra argumenta que tudo depende do que a criança está abrindo mão. Se for para deixar de ir ao parquinho, à academia ou estudar, o game precisa ser mais controlado. Mas, se o jogo substituir o uso de redes sociais ou a audiência passiva à TV, por exemplo, pode ser a melhor escolha.
A caça ao impostor
- Among Us é um jogo multiplayer lançado em 2018, que pode ser jogado entre amigos ou formando grupos aleatórios.
- Pelo enredo, cada jogador é tripulante de uma nave e deve realizar tarefas para que a viagem ocorra em segurança.
- Todos os 10 jogadores conseguem visualizar o que os demais estão fazendo, desde que os acompanhem pelo cenário.
- Entretanto, pelo menos um dos personagens é um impostor, escolhido aleatoriamente pelo game. Ele tenta eliminar outros participantes e sabotar os mecanismos da espaçonave.
- Caberá aos outros personagens, então, se organizarem para investigar quem é o impostor, reunindo provas deixadas pelo mapa e os testemunhos.
- Após a discussão, uma votação é aberta para “ejetar” o jogador que o time acredita ser o impostor.
- Se o grupo errar a indicação, um dos jogadores é excluído da brincadeira. Se acertar, a equipe vence o jogo.
- O jogo está disponível gratuitamente nos celulares (Android e IOS), mas também existe a versão para computador, que é paga.