Há mais de 120 dias, a rotina de milhares de famílias mudou radicalmente. Com a implantação do sistema de distanciamento social para conter o coronavírus, sem escola e com incentivo ao home office, pais e filhos se viram obrigadas a ficar em casa. Essa realidade que se impôs abruptamente é mais significativa para os pequenos que são filhos únicos e enfrentam essa jornada sem a companhia presencial de um amigo.
Moradora da Capital, a publicitária Clarissa Barreto, 41 anos, conta que o filho, Rafael, seis anos, é extremamente sociável e demandante de atenção:
— Ele gosta de casa cheia. Estávamos sempre no parque, na pracinha ou fazendo churrasco na casa dos dindos ou na minha mãe. Então, para ele, é muito estranha essa experiência. Não é do feitio do Rafa brincar sozinho. Mesmo quando joga videogame, por exemplo, ele fica me chamando para mostrar o que está fazendo e o quão legal é aquilo.
Sem contato com outras crianças há quase quatro meses, dissipar a energia do guri tem sido um desafio para Clarissa, que trabalha em turno integral no sistema de teletrabalho. Deixá-lo mexer no tablet, brincar de casinha, jogos e videogame e realizar leitura antes de dormir estão na lista de atividades feitas. Além disso, o pequeno também ajuda na cozinha e recolhe a roupa do varal. Contudo, todas essas ações não bastam. Por isso, de duas a três vezes na semana, ela conta com a ajuda da mãe, que brinca e cuida do garoto no amplo pátio do edifício.
— Esse é outro problema quando ele está comigo. Moro em um apartamento que pega pouco sol e, como não saio com ele para o pátio, ele diz que não estou deixando-o tomar vitamina D. O que percebi também é que ele comia de tudo. Agora, está mais exigente para comer fruta, salada etc. Ele está mais ansioso e entediado, e passa praticamente o dia comendo, apesar de estar magro — observa.
Rotina e flexibilidade
A psicóloga Juliana Weide explica que a pandemia significou o rompimento da rotina para adultos e crianças. Entretanto, os pais se transformaram, em muitos casos, na única possibilidade de interação que os pequenos têm. Ela afirma que o grande desafio do adulto é criar estratégias de rotina para enfrentar a desorganização criada pela pandemia.
— O adulto é o modelo para a criança de como enfrentar esse fator estressor. Não é uma tarefa fácil essa responsabilidade, por isso, a palavra para os pais é flexibilidade. O rendimento deles, como profissionais, e o dos filhos, com as tarefas da escola, vai ser diferente neste momento, porque ele é novo e atípico. Neste caldeirão, escolas e empresas precisam ter em mente também que o nível de exigência tem de ser arrefecido.
A especialista reforça que é compreensível que pais optem por deixar os filhos mais tempo diante de telas, mas reforça a importância de dedicar um tempo aos pequenos:
— Durante o trabalho, é impossível dar atenção e brincar com a criança. Entretanto, ao final do expediente, é importante reservar umas horinhas para oferecer interação de qualidade para a criança e troca de afeto.
Impactos do distanciamento social
Regras mais flexíveis foram incorporadas ao cotidiano de Isadora Camara, oito anos. As tarefas de casa são realizadas no tempo da menina, pressão por excelência nos resultados, conta a educadora física Jaqueline Camara, 40 anos, mãe da garota.
— Os temas escolares são o maior desafio para ela e para nós, que somos pais, porque não temos tempo e a didática de ensino. Em relação a atenção, ela entende que, em determinados momentos, não receberá a minha atenção, nem a do pai, por estarmos trabalhando. Nesse aspecto, vi um amadurecimento dela — pontua Jaqueline.
A educadora física conta ainda que a filha, acostumada a ir para a escolinha em turno integral desde os seis meses de idade, tem sentido bastante falta do convívio com crianças da idade dela. Apesar de o início da noite ser reservado para a interação entre os pais e Isadora, a menina sente falta de brincar e interagir com os amigos.
A psicóloga Luciana Fossi explica que, entre seis e oito anos, é bem comum que os pequenos demandem o convívio mais intenso com amigos. Isso porque desenvolveram uma certa independência e sociabilidade maiores do que aqueles que estão na primeira infância, que estão ainda em processo de socialização.
— Tendo em vista esse cenário, pode ser que esse grupo aproveite mais e esteja mais ansioso pelo retorno das aulas presenciais, porque a escola é um universo de descobertas e atividades. O que pais e professores terão de trabalhar, novamente, é esse entendimento de que o colégio também é um espaço de aprendizado, já que, em razão desta euforia, o ensino seja deixado em segundo plano pelas crianças.
Luciana destaca ainda que, para crianças de zero a cinco anos, o principal desafio na futura retomada às aulas será a ressocialização, desapego aos pais e respeito a regras de convivência em grupo na sala de aula.
Juliana afirma também que, durante o período de distanciamento, os pequenos podem desenvolver problemas de restrição alimentar, de sono e mudança de humor. Contudo, a especialista diz que isso não significa que a criança desenvolveu algum tipo de transtorno.
— Pode indicar que ela está precisando de ajuda e atenção para algumas áreas do desenvolvimento dela. Aí, os pais precisam se mostrar disponíveis para os filhos, procurar ouvir e interpretar o que eles vêm enfrentando e intervir de maneira afetuosa — pontua.
Ficar em casa é a opção mais segura, apontam especialistas
Para suprir a saudade dos colegas e amigos, Isadora pega o celular dos pais e fica boas horas fazendo chamada de vídeo com as amigas, duas vezes na semana. Rafael, por sua vez, já pediu para que a mãe adotasse um irmãozinho para que ele tivesse com quem brincar. Contudo, assim como Isadora, ele é adepto das meios digitais para matar a saudade de quem gosta. Cerca de quatro dias na semana são separados para ele fazer chamadas de vídeo com a prima que mora no Exterior.
A ferramenta oferecida pelos pais aos pequenos é, no momento, a mais segura na avaliação de profissionais da saúde. Lucia Pellanda, professora de epidemiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), afirma que as chamadas de vídeo são a melhor opção:
— Neste momento, que é muito crítico, recomendo atividades de conexão virtual, porque nosso objetivo é reduzir a circulação total do vírus.
O pediatra José Paulo Ferreira explica que, apesar de as crianças não serem o público-alvo do coronavírus e manifestarem sintomas brandos da doença, elas são vetores da pandemia. Mesmo o encontro de pequenos que estão isolados tem seus riscos:
— A criança fica em casa, mas o adulto sai para fazer as compras, por exemplo. O responsável pode pegar a covid-19, passar para o filho, que, assintomático, transmite para o amiguinho, que também será assintomático, mas que contaminará os pais. Infelizmente, as crianças pagam o preço para proteger os adultos e garantir o equilíbrio do número de leitos no nosso sistema de saúde.