Seja por gratidão, com a intenção de prestar contas aos seguidores ou no espírito de responder à canção de Simone (“Então é Natal, e o que você fez?”), a trend “Como posso ser triste se…” tomou conta das redes sociais em dezembro e provocou reflexões. Na publicação, as pessoas compartilham fotos de viagens, eventos, filhos, bens materiais, entre outros, como justificativa para não ficarem tristes.
Diversos famosos aderiram à trend, como Preta Gil, Angélica, Fred Desimpedidos, Boca Rosa, Gil do Vigor e Larissa Manoela. Por outro lado, muitos usuários criticaram a prática, como uma expressão de “positividade tóxica” ou problematizaram o fato da trend ocultar tristezas e frustrações.
Para Luciana Barcellos Fossi, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o perigo de qualquer trend ou de como usamos as redes sociais, de um modo geral, é o quanto ao recorte do que postamos não representar de fato aquilo que vivemos.
Ela acrescenta que, muitas vezes, “estamos em um show ou em um momento em família, mas ficamos mais ocupados em produzir conteúdos para nossas redes sociais do que, de fato, estar conectado com as trocas que estão acontecendo naquele momento”.
A busca constante da exposição de uma vitrine de vida perfeita, de corpos perfeitos e tantos outros aspectos idealizados de nossa existência pode causar sofrimento, como destaca Luciana — especialmente por serem inatingíveis na vida real, pela maioria das pessoas:
— Hoje, existem pessoas que têm como profissão expor um estilo de vida nas redes sociais que são incompatíveis com a vida das pessoas comuns, o que pode produzir a sensação de fracasso e impotência, especialmente nos mais jovens — relata.
Outro ponto é que a trend também pode potencializar a ideia de que a felicidade depende exclusivamente de conquistas extraordinárias, o que não seria verdadeiro, como observa a psicóloga e coordenadora do curso de Psicologia da Unisinos, Melina Lima. Ela pondera que a sensação de satisfação e plenitude que a felicidade nos traz pode surgir de momentos muito simples, como tomar um café ou estar com a família e amigos.
Porém, conseguir enxergar isso depende de um exercício constante:
— Atualmente, valorizar os pequenos momentos alegres está na contramão de uma tendência que só valoriza a felicidade nos grandes feitos. Sendo que a felicidade também está nas coisas mais simples da vida, porque ela é uma escolha intencional — diz.
Pensar a tristeza ou alegria não pode ser feito de maneira desarticulada sem situar raça, gênero ou classe.
CAMILA PEIXOTO FARIAS
Psicanalista e professora da UFPel
A psicanalista e professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Camila Peixoto Farias ressalta que a lógica da trend tem que ser pensada a partir das questões de raça, classe e gênero. Muitos elementos que causam tristeza, sobrecargas e exaustão estão associados à classe e divergem entre as pessoas:
— Muita gente não vai conseguir reconhecer a dor, o sofrimento, a tristeza ou frustração de outra pessoa porque aquilo não faz sentido para ela, não é algo que vivencia — argumenta. — Pensar a tristeza ou alegria não pode ser feito de maneira desarticulada sem situar raça, gênero ou classe, senão a gente simplifica algo que é necessário uma complexidade maior pra pensar.
A importância da tristeza
Camila salienta que é importante que se abra espaço para tristeza, frustração e o luto — ou todos aqueles sentimentos difíceis. Especialmente no Rio Grande do Sul, como a psicanalista acrescenta, após um ano de situações muito difíceis de perdas e lutos, que estão em processo até hoje.
— Abrir espaço para cuidar e elaborar, em termos subjetivos, as dores é construir memória. É um recurso fundamental para que efetivamente essa tristeza não vá acompanhar o sujeito. É preciso criar recursos para que isso não vá se desdobrando em algo "adoecedor" — explica Camila.
Luciana corrobora, e destaca que ficar triste, muitas vezes, é um processo necessário para nossa saúde mental:
— Quando perdemos um ente querido, quando rompemos um vínculo, precisamos nos entristecer para elaborarmos psiquicamente esse acontecimento. Cada pessoa expressa a sua tristeza de um jeito, alguns choram, outros não. Mas é uma emoção que quase sempre faz parte de um processo de reestruturação emocional diante de uma situação traumática.
Segundo Melina, cada emoção cumpre um papel, como nos proteger ou lutar por uma injustiça. A psicóloga afirma que sentir intensamente emoções mais desagradáveis com frequência pode ser um sinal de alguma patologia, mas tentar suprimi-las também pode ser problemático.
Para exemplificar, Melina cita quando uma criança se machuca ou se incomoda com algo e acaba chorando: os adultos não podem dizer o famoso “não foi nada”, porque algo aconteceu que fez a criança pensar e se sentir desconfortável, então o choro é uma manifestação adequada.
— Parece que quando adultos, seguimos usando o “não foi nada”, quando realmente algo aconteceu e negligenciamos. Muitas vezes, nós não nos expressamos e não nos acolhemos. Isso sim, é perigoso — conclui.
Equilíbrio
O período de final de ano costuma ser, naturalmente, um momento de balanço: as alegrias e tristezas dos últimos 365 dias, as dores e as frustrações. “Então é Natal, e o que você fez?”, como questiona Simone.
Que a avaliação dos últimos 365 dias inclua os pequenos momentos de felicidade que conseguimos desfrutar, não só os grandes feitos.
MELINA LIMA
Psicóloga e coordenadora do curso de Psicologia da Unisinos,
Para Melina, cabe considerar essa pluralidade de emoções que experimentamos enquanto humanos:
— Devemos acolher as nossas vulnerabilidades e direcionar intencionalmente o nosso olhar em busca dos pequenos momentos de satisfação e plenitude. Que a avaliação dos últimos 365 dias inclua os pequenos momentos de felicidade que conseguimos desfrutar, não só os grandes feitos.
Luciana aponta que precisamos compreender que a vida sempre será composta por realizações e frustrações, o que é muito importante para alcançar um equilíbrio.
— É preciso enaltecer os feitos bem sucedidos, assim como acolher nossas falhas e limitações. Estabelecer parâmetros reais para esta avaliação, evitando qualquer modelo idealizado do modo de viver a vida — finaliza.