A pandemia forçou milhões de pessoas em todo o mundo a permanecerem em casa. Sem as opções externas tradicionais, da viagem ao bar da esquina, foi nos videogames que distanciados sociais de todas as idades encontraram uma alternativa para se entreter. E o Rio Grande do Sul tem tudo a ver com isso: o Estado se tornou, nos últimos anos, uma referência nacional no desenvolvimento de jogos digitais.
– E não é mais somente jogos de celular, às vezes apenas para uma empresa usar como ferramenta para colaboradores. Literalmente, passamos de fase em matéria de games – afirma Eduardo Muller, coordenador do curso de Jogos Digitais da Universidade Feevale e diretor criativo da 40 Giants Entertainment. – Com a pandemia, os jogos saltaram como uma opção de entretenimento forte, como já é tradicional nos países de inverno rigoroso.
A consultoria Comscore, atuante na medição de audiência, identificou entre os brasileiros um salto de 20% no uso de jogos na internet e também nas visitas a portais de games em março, quando medidas de restrição começaram a ser adotadas por todo o país. No mês de junho, 84,1 milhões, dos 122,7 milhões de brasileiros que estão conectados a internet, consumiram esse tipo de entretenimento. Pesquisas ao redor do mundo reforçam a mesma tendência no período.
Uma das locomotivas desse mercado no Brasil, a desenvolvedora gaúcha de games Aquiris sente os efeitos da pandemia. A rotina da empresa foi alterada, com funcionários em home office. E a quantidade de trabalho cresceu. Desde março, 20 novos profissionais foram contratados, e até o final do ano se prevê o reforço de mais 30 pessoas na equipe. Por isso , o espaço que a empresa ocupa no parque tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o Tecnopuc, será ampliado.
Em artigo publicado em seu perfil no Linkedin, Israel Mendes, cofundador e diretor criativo da Aquiris, reflete sobre a pandemia e a indústria de games. No texto, ele pondera que a pandemia provocou um “êxodo compulsório” para tecnologias e espaços alternativos. Uma saída para manter a “intelectualidade, da sociabilidade e, em alguns casos, até mesmo da sanidade”.
– Acredito que os games ofereceram, para todas as idades, uma realidade alternativa adequada para o momento, se encaixam muito bem – comenta, em entrevista a GZH. – E os negócios cresceram na pandemia, sim. Além das contratações, ainda neste ano, faremos um lançamento mundial muito grande, um game para o Apple Arcade (serviço de assinatura de games da gigante norte-americana) – avisa Mendes.
Em 2018, o 2º Censo da Insdútria Brasileira de Jogos Digitais já apontava o Rio Grande do Sul como um importante cluster (conjunto de setores) de produção de games. Elaborado pelo Ministério da Cultura, o mais recente censo da área identificou o Estado como um dos mais desenvolvidos do país por causa da “grande sinergia” entre universidades e empresas, com uma entidade local forte, a Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Rio Grande do Sul (ADJogosRS).
– Criamos algo que não se vê em outros Estados. Aqui, empresas experientes orientam, auxiliam as novas. Não se criou a ideia dos siris dentro do balde, que cada um puxa o outro em uma competição na qual ninguém alcança o topo. Formamos uma comunidade de empresas – explica Everton Vieira, diretor criativo da Izyplay e presidente da ADJogosRS.
Depois da desconfiança
O ponto de partida dessa história remonta à segunda metade da década de 1990, com uma das pioneiras, a empresa Southlogic. No final dos anos 2000, ela foi comprada pela gigante Ubisoft, responsável por alguns dos games mais valiosos do mundo, como os da franquia Assassin’s Creed. O interesse na área explodiu. Mas, poucos anos depois, a companhia se despediu dos gaúchos. Em vez de lamentar a perda, quem já havia mergulhado no desenvolvimento de games decidiu ir mais fundo: empreender ou dar aula nas universidades.
– Surgiram mais empresas depois da partida da Ubisoft, e quem havia trabalhado na sede deles começou a dar aula de desenvolvimento. Fazer games é algo que precisa de pessoas. Foi algo como as condições ideais de temperatura e pressão. E agora, com a pandemia, já contamos com um aumento de 30% na nossa receita – comemora Rodrigo Scharnberg, produtor da Rockhead Studios.
Aos 25 anos, Alice Rocha Abreu é uma das novas contratações da Aquiris. Desde junho, a jovem egressa do curso de Jogos Digitais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é uma das programadores da empresa. Ela ajuda a reforçar o time das mulheres no mundo da criação de games – e elas são muito presentes, desmistificando uma crença de que são eles que jogam mais: segundo a Pesquisa Games Brasil 2020, as mulheres representam 53,8% do total de jogadores do país.
– Quando eu fiz o curso, era uma das poucas gurias da turma. Mas isso está cada vez mais diferente, apesar da cultura dos games ainda ser forte no público masculino.
Ela tem feito força em eventos e conversas informais para atrair mais mulheres para o mercado, e uma das iniciativas está em pleno andamento. Alice é uma das organizadoras nacionais do Women Game Jam 2020 (wgjbr.com.br), que tem como foco o público feminino, incluindo pessoas cis e trans e não binárias. Totalmente online neste ano devido à pandemia, o evento trabalha o desenvolvimento de jogos com participantes que são desafiados a planejar e a criar um game utilizando o tema proposto em tempo determinado.
– Já estamos com mais de 600 inscritas neste ano – comemora Alice.
A demanda por profissionais cresceu. Já foi mais frequente a professora Rossana Baptista Queiroz ser procurada por pais de adolescentes que almejam um lugar nesse mercado. Coordenadora da graduação em Jogos Digitais da Unisinos, era comum para ela tirar dúvidas sobre a escolha dos filhos. Em muitas ocasiões, os futuros estudantes vinham com os responsáveis conhecer o curso e entender o que iriam aprender.
– Os mais jovens, muitas vezes, têm pais mais resistentes, que acham que os filhos irão passar a faculdade inteira jogando (risos). Houve caso em que os pais aprovaram a escolha, mas pediram que o filho fizesse, em paralelo, outra graduação por via das dúvidas. Mas isso está mudando muito, felizmente – conta Rossana.
Os mais jovens, muitas vezes, têm pais mais resistentes, que acham que os filhos irão passar a faculdade inteira jogando (risos). Houve caso em que os pais aprovaram a escolha, mas pediram que o filho fizesse, em paralelo, outra graduação por via das dúvidas. Mas isso está mudando muito, felizmente.
ROSSANA BAPTISTA
Coordenadora da graduação em Jogos Digitais da Unisinos
O curso da Unisinos tem 16 anos de existência. É um pioneiro nacional na gradução em games. Hoje, além dele, existem cursos técnicos, de graduação e especialização em instituições como Senac, Feevale, Uniritter, PUCRS e Universidade de Caxias do Sul (UCS) – sem falar nos cursos na área da Computação. Coordenador do curso de Jogos Digitais da Feevale, Eduardo Muller também lembra dessa “época” em que pais o procuravam desconfiados.
– Olha, faz algum tempo que não tenho recebido mais os pais nessa situação. Mas no começo vieram muitos! Hoje quem entra sabe que há mercado de trabalho em crescimento – diz ele, que lembra de como projetos podem chegar ao mercado direto das instituições. – Juntei cinco alunos, em 2013, e montamos um projeto de jogo RPG (Role Playing Game, estilo em que os jogadores interpretam seus personagems). Foi o Tormenta, produzido dentro da Feevale e lançado em 2015. Nasceu graças a um financiamento coletivo, o primeiro no Brasil para a produção de um game – lembra o professor.
Só que faltava um personagem importante para o enredo dos games no Rio Grande do Sul se desenrolar de vez. Mas, segundo as fontes do setor ouvidas nesta reportagem, ele chegou em julho: o governo do Estado. Trata-se do Programa GameRS, lançado por meio da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sict) em parceria com as secretarias da Cultura, da Educação e do Desenvolvimento Econômico e Turismo.
– Sonhamos por anos com uma parceria como essa. Com esse incentivo em programas para estímulo e recursos, certamente teremos mais estudantes interessados na área – reflete o professor Marcelo Cohen, um dos coordenadores do curso de especialização em Desenvolvimento de Jogos Digitais da PUCRS.
O otimismo das empresas com a iniciativa é grande, visto como um marco de reconhecimento da relevância econômica. Isso porque, com o decreto assinado pelo governador Eduardo Leite dois meses atrás, o setor se tornou parte da política pública estadual, com direito a apoios e editais que contemplem as empresas.
– É um mercado extremamente relevante no mundo, e aqui no Rio Grande do Sul tem feito por merecer a atenção. Trata-se de uma área da nova economia que nos interessa muito, que é vinculado também à cultura e à educação. Queremos apoiar a geração de um ambiente de negócios – afirma o secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia Luís Lamb.
A partir de um comitê gestor com a participação de representantes do executivo gaúcho, das empresas e de universidades, serão propostas ações a partir de agora em cinco eixos: desenvolvimento da indústria, capacitação de recursos humanos, acesso a financiamentos, geração de ambientes de negócios e ampliação de políticas de demandas.
Sete games gaúchos para o mundo
Confira alguns games produzidos por estúdios locais que são jogados no mundo inteiro em dispositivos móveis (mobile), computadores (PC) e em videogames (consoles)
- Horizon Chase (para mobile, console e PC, empresa Arquiris) – Jogo de corrida inspirado em Top Gear. Em atualização de maio, o game incluiu duas pistas novas para pilotar, uma chamada Pôr do Sol no Guaíba e outra, Anoiteceu em Porto Alegre. A trilha é uma versão eletrônica de Deu pra Ti, de Kleiton & Kledir.
- Looney Tunes World of Mayhem (mobile, Aquiris) – Os jogadores se juntam a Pernalonga, Patolino, Marvin e outros personagens clássicos em batalhas divertidas em um Mundo Looney Tunes. É possível criar equipes e se divertir com rivalidades clássicas como Piu-Piu versus Frajola ou Papa-Léguas versus Coiote.
- Starlit Adventures (mobile e console, Rockhead) – Game de ação e aventura, com controles especialmente criados para touchscreen. Apresenta um universo fantástico cheio de personagens (os Starlits, dóceis criaturas de nariz estrelado), visual rico e uma variedade de mecânicas para a experiência na tela do celular ou tablet.
- Kaze and the Wild Masks (PC e console, Vox) – O jogo conta a história de Kaze, uma coelha que vivia em sua terra natal, Carrotland, até um meteoro desconhecido atingir seu vilarejo e tornar todos do local em seres enfurecidos. Agora, ela tem salvar Carrotland.
- Defuse the Bomb (mobile, Izyplay) – O game desafia o jogador a desativar uma bomba-relógio antes da explosão. O desafio vai se tornando cada vez mais complexo, fazendo o jogador girar o dispositivo tocando a tela para achar o compartimento onde estão botões, fios e outros elementos do explosivo.
- Toren (PC e console, SwordTales) – O jogador vai para o misterioso mundo de Toren e vivencia a história da Criança da Lua, destinada a escalar uma gigantesca torre, conhecida como Toren. É preciso resolver enigmas e enfrentar monstros enquanto se escala.
- Guitar Band Battle (mobile, Zeeppo) – O jogo oferece a combinação de ritmo e bandas para celulares e tablets, com guitarras para o gamer testar as habilidades e competir com adversários reais. O início é na garagem, montando uma banda e evoluindo até virar um ícone do rock passando por palcos, estágios e arenas diferentes.