Aumento de mensalidades, inexistência de um fundo para cobrir eventuais problemas e medo da iminência de qualquer demanda coletiva. Esses são alguns dos problemas que ainda são enfrentados por condomínios que teriam sido vítimas de supostos desvios financeiros realizados pela imobiliária Menino Deus, em Porto Alegre.
O caso veio à tona há cerca de um ano, quando a Polícia Civil deflagrou a Operação Condominium, em 22 de agosto de 2023. Com a ação, três sócias da empresa passaram a ser investigadas por suspeita de apropriação indébita, furto qualificado e estelionato. O prejuízo causado pela empresa passaria de R$ 8 milhões, segundo a investigação. Seriam valores repassados por síndicos para pagamentos de contas de água, luz, gás e vigilância privada. Contudo, a imobiliária não realizou os pagamentos, deixando alguns serviços em atraso por vários meses. Há suspeitas também de que a empresa teria emitido recibos falsos de serviços de manutenção predial que nunca foram executados.
A investigação ainda corre, sob sigilo. Até o momento, não há indiciamentos. Conforme a Polícia Civil, a demora para o encerramento do caso acontece devido à complexidade do episódio, que envolve mais de 200 inquéritos, 200 ocorrências registradas e cerca de 150 condomínios afetados. Além do processo de quebra de sigilos fiscais, bancários e bursátil (referente à bolsa de valores), assim como a análise minuciosa de todo material coletado.
Os afetados
A reportagem de Zero Hora conversou com três síndicas que atuam em condomínios que foram afetados pelo suposto esquema. Até o momento, nenhum deles conseguiu recuperar o montante que teria sido desviado pela imobiliária. Em todos os prédios contatados, serviços importantes e até mesmo obrigatórios de conservação e restauração ficaram em segundo plano em razão das dificuldades financeiras provocadas pela suposta fraude.
O condomínio Figueira do Cristal, que fica no bairro Cristal, na zona sul de Porto Alegre, luta mensalmente para conseguir pagar a dívida de R$ 25 mil deixada pela imobiliária, além das contas que são cotidianas. O déficit foi descoberto em março do ano passado e é referente a valores que teriam sido deixados de ser pagos pela empresa à Receita Federal.
— Parcelamos a dívida em 60 meses. Desde março de 2023, estamos enfrentando muitas dificuldades financeiras — lamenta Marilez Amaro, síndica do edifício.
Para contornar a situação e cobrir manutenções essenciais, como a impermeabilização do telhado, o condomínio recorreu a chamadas extras — cobranças adicionais para cobrir despesas urgentes.
— Na primeira chamada, no ano passado, parcelamos em 12 vezes de R$ 35 para zerar o saldo devedor deixado pela imobiliária. Em julho deste ano, tivemos que fazer outra chamada extra, de três vezes de R$ 302 para manutenções necessárias. Estamos fazendo o mínimo indispensável, pois a situação é muito difícil — explica a síndica, ressaltando que apesar de não ter agradado os moradores devido ao peso no orçamento familiar, essa nova cobrança foi a única forma encontrada pelo condomínio para lidar com a dívida.
Na Cidade Baixa, o edifício Rio Madeira também foi vítima da fraude, segundo relato da síndica profissional Giselen Vargas. Com 30 anos de experiência em gestão de condomínios, ela notou possíveis irregularidades praticadas pela imobiliária:
— Atraso de pagamentos, lançamentos errados… Sabemos que falhas humanas existem, mas quando se tornam frequentes criam um alerta. Solicitei que apresentassem nota dos serviços, mas não ocorreu, inclusive cheguei a conversar com uma das sócias. Em fevereiro de 2023, tirei o condomínio da imobiliária, mas o saldo e os documentos nunca foram entregues. Falaram que iriam priorizar quem acreditava neles.
Ela diz que, assim como outros condomínios de Porto Alegre, o fundo de reserva jamais apareceu. Além disso, os moradores tiveram que assumir outras contas que estavam atrasadas e que deveriam ter sido pagas pela imobiliária, somando um prejuízo de R$ 42 mil, além dos encargos do advogado.
— Seguramos algumas despesas até recuperar o dinheiro que seria usado para uma reforma de telhado. Optamos por fazer alguns reparos emergenciais, porque são mais baratos. Também tivemos que abrir mão de manutenções obrigatórias — explica a síndica sobre os problemas supostamente causados pela empresa.
O condomínio era administrado pela imobiliária Menino Deus há quase duas décadas. Segundo Giselen, esse fator fazia com que os moradores tivessem confiança na empresa e não desconfiassem de eventuais fraudes.
A entrega de documentos que alegavam o pagamento de algumas despesas também conferia credibilidade à empresa, de acordo com a avaliação da síndica profissional Rita Porto. Ela é responsável pelo edifício Rossi Brisa, que fica na zona leste da Capital e que também é citado como vítima do suposto esquema.
Rita relata que os comprovantes de pagamento traziam tranquilidade e confiança aos moradores. Porém, com o tempo, notou-se que eles poderiam ser falsos, já que as contas que constavam nos documentos como pagas, na realidade, ainda estavam pendentes.
— Entramos com processo, já temos liminar para liberação dos valores, quase R$ 300 mil, referentes ao prejuízo, mas como os bens das proprietárias ainda estão bloqueados, não recebemos nada — afirma Rita.
O Rossi Brisa foi administrado pela imobiliária Menino Deus durante quatro anos, até a mudança de administração em julho do ano passado. O edifício, que possui 224 unidades habitacionais e oito torres, existe há 12 anos e, até então, nunca havia sido envolvido em um caso de fraude como este.
O que diz a Associação dos Síndicos do RS
Em nota à reportagem, a Associação dos Síndicos do Rio Grande do Sul (Assosíndicos-RS) comentou sobre o caso. Segundo a entidade, diversas medidas poderiam ser realizadas para evitar essa situação, como auditorias financeiras periódicas e uma melhor comunicação entre os moradores, os síndicos e as empresas contratadas. Veja a nota na íntegra:
“Uma das principais precauções seria a realização de auditorias financeiras periódicas e independentes para garantir que os valores pagos pelos condomínios fossem corretamente aplicados. Além disso, a escolha criteriosa dos prestadores de serviços, com base em uma análise detalhada de sua reputação e histórico, é fundamental. Também é essencial que os síndicos mantenham uma comunicação constante e transparente com os moradores e com as empresas contratadas, acompanhando de perto todas as transações financeiras”.
O que dizem as defesas
A advogada Mariju Maciel, que representa uma das investigadas, Sueli Ivone Fin Gonzales, disse que a suspeita preferiu não se manifestar à reportagem.
Em matéria publicada em Zero Hora em agosto do ano passado, a defesa havia informado que Sueli tinha se retirado da sociedade, por meio de uma medida judicial, ainda em março daquele ano:
"Ela, quando percebeu irregularidades, realizou o pedido de afastamento de uma das sócias, o que foi negado pela juíza. Diante disso, por não compactuar com tudo que estava acontecendo, pediu a sua retirada da empresa de forma que não só não é responsável pelos fatos que estão sendo apurados como ela própria levou as irregularidades para conhecimento da Justiça", informou à época.
A defesa das outras investigadas, Nádia Silvane Vieira Schallenberger e Eliane Janete Vieira Schallenberger, também optou por não se manifestar sobre as suspeitas de crimes.
“A Defesa de Nádia e Eliane não se manifestará sobre a investigação, em respeito ao sigilo do procedimento”, afirmou o advogado Carlos P. Thompson Flores.