Em um projeto inédito no Estado, o Rio Grande do Sul deve ver surgir um novo modelo de presídio, a ser erguido em Erechim, no norte do Estado. Se o plano se concretizar, a unidade será a primeira no Estado a ser construída e administrada em conjunto por poder público e iniciativa privada. Serão 1,2 mil vagas para apenados, distribuídas em 10,4 hectares, em meio à área verde do município que tem cerca de 105 mil moradores.
O modelo vem sendo debatido internamente pelo governo Eduardo Leite desde 2019, e já existe em outros locais do país. Segundo o Executivo gaúcho, o formato possibilita uma gestão mais eficiente dos recursos do Estado. Na prática, a movimentação de presos e a segurança externa da unidade continuará a cargo da Polícia Penal, assim como em outras prisões gaúchas. A iniciativa privada entra para dar apoio à operação, sendo responsável pela segurança interna, manutenção, alimentação e atividades de ressocialização de apenados.
O leilão da Parceria Público-Privada (PPP) ocorreu na B3, em São Paulo, no último dia 6. O certame teve apenas uma proposta, da Soluções Serviços Terceirizados, grupo paulista que atua há 15 anos no país e conta com mais de 18 mil colaboradores, atendendo empresas e organizações de diversos segmentos, inclusive o prisional.
No entanto, na quarta-feira (11), a empresa foi considerada desclassificada da disputa, porque não atendeu a um item do edital, uma carta de instituição financeira declarando que analisou o plano de negócios da empresa e que atesta a sua viabilidade.
Agora, a concessionária tem prazo de oito dias úteis, a partir da próxima segunda-feira (16), para apresentar a documentação faltante. Se não o fizer, o leilão será considerado deserto e um novo edital precisará ser publicado. Outro certame já havia sido feito no fim do ano passado, mas não teve interessados.
Se a empresa regularizar a situação, a intenção do governo gaúcho é iniciar a construção da unidade já no primeiro semestre do ano que vem. As obras serão feitas pela concessionária em um terreno do Estado, e a expectativa é de que a entrega ocorra em até 24 meses. O Executivo ressalta que a empresa deve respeitar, ao longo da construção, diretrizes definidas pelo governo.
Investimento de quase R$ 150 milhões
No modelo de PPP, a empresa selecionada será remunerada pela gestão de uma concessão pública pelo período de 30 anos. No caso do complexo penal, a vencedora fica responsável pela construção e operação do presídio, que inclui manutenção das instalações, limpeza e apoio logístico na movimentação dos detentos.
Somente para a construção da unidade, o investimento previsto é de R$ 149 milhões, conforme o governo. Já a operação tem expectativa de gasto no valor de R$ 50,5 milhões ao ano.
Conforme a Secretaria de Parcerias e Concessões (Separ), somando todos os gastos com a construção, presos e manutenção do local, o valor foi estipulado, na proposta da concessionária, em R$ 233 ao dia por vaga disponibilizada na prisão — estando ou não ocupada.
Assim, o valor por apenado fica em torno de R$ 7 mil por mês — ou R$ 84 mil no ano. O governo afirma que o valor máximo a ser repassado anualmente para a empresa foi fixado em R$ 102 milhões.
Os valores e o novo modelo de prisão são criticados por parte de representantes da Polícia Penal, responsável pela administração e segurança de unidades prisionais gaúchas (leia mais abaixo).
Presídio de Erechim
- O presídio ficará distante da zona urbana de Erechim, entre as rodovias RS-135 e BR-153, atendendo "a diretrizes de segurança"
- Serão construídas duas unidades de regime fechado, com capacidade para 600 apenados do sexo masculino em cada uma delas
- Total de 1,2 mil vagas
- Gasto de R$ 233 ao dia por vaga disponibilizada – ela estando ou não ocupada
- Ao mês, serão pagos à empresa cerca de R$ 7 mil. Ao ano, R$ 84 mil
- Somando as 1,2 mil vagas disponíveis, o total pago será de, no máximo, R$ 102 milhões por ano
Referências internacionais
No estudo de engenharia do presídio, feito por empresas de consultoria contratadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foram usados como referências alguns estabelecimentos penais de fora do país.
Um deles é o Centro de Detenção em Marselha, na França. O local "atende a política penitenciária de prevenção mais do que repressão, e promove isso através de reabilitação e educação ao invés da limitação de um confinamento ao qual é comum no Brasil". O "conceito mais humanizado" se traduz na própria arquitetura do espaço, que tem "paleta de materiais discretos de pedra natural e concreto marcado", com "espaços mais neutros, suaves e confortáveis" e ainda um pomar, em que os detentos aprender noções de cuidado e cultivo, aponta o estudo.
Outra referência é a Prisão Storstrom, uma das maiores da Dinamarca. A unidade de segurança máxima fica em uma ilha e foi projetada com o intuito de proporcionar um cárcere "mais humano e sociável", segundo o estudo. O local tem janelas amplas e espaço aberto para práticas de esportes.
A arquitetura "contribui diretamente para a qualidade do dia a dia, interferindo tanto nos apenados quanto nos funcionários, sem deixar de considerar a segurança que uma instituição penal deve atender", diz o texto. Outro "ponto significativo" da unidade dinamarquesa é a "utilização de áreas verdes", como grandes e pequenos jardins por todo o terreno, para "soluções térmicas e ambientais", que contribuem também para a "questão estética e sensação de conforto".
Segundo o governo do Estado, na construção, a concessionária tem de obedecer ao conjunto de diretrizes definido pelo Executivo, mas tem liberdade para planejar aspectos de design e funcionalidades, como dos exemplos acima.
A defesa de um espaço mais humanizado se une ao foco do governo na ressocialização de presos, por meio de oportunidades de trabalho, educação e reinserção social a eles.
É uma PPP simbólica para o país porque busca equacionar um problema histórico. Uma ferramenta que, se bem trabalhada, vai ajudar o Brasil a combater o déficit de vagas no sistema prisional e colaborar para a ressocialização dos presos
LUCIENE MACHADO
Superintendente da área de estruturação de projetos do BNDES
— Esse projeto é uma grande oportunidade de mudar o sistema prisional do Estado, em uma área social, a segurança pública, que impacta tanto na sociedade. Vamos investir na ressocialização e diminuir o déficit no sistema prisional. Estamos no governo do RS para potencializar projetos desse porte, buscando sempre melhorar a vida das pessoas — declarou o titular da Separ, Pedro Capeluppi, após o leilão em SP.
A gestão do presídio por meio de uma PPP foi definida como "simbólica" pela superintendente da área de estruturação de projetos do BNDES, Luciene Machado:
— O governo do RS apostou nesse modelo inovador, que está alinhado com o interesse público. É uma PPP simbólica para o país porque busca equacionar um problema histórico. Uma ferramenta que, se bem trabalhada, vai ajudar o Brasil a combater o déficit de vagas no sistema prisional e colaborar para a ressocialização dos presos.
O escopo do projeto foi elaborado por meio da Separ e da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS), com o apoio do BNDES. O leilão foi organizado pela subsecretaria da Administração Central de Licitações (Celic), vinculada à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) na modalidade concorrência internacional.
O projeto também contou com o apoio do BID, com o Programa de Parcerias de Investimentos federal (PPI), e de nove consultorias do Brasil, dos Países Baixos e de Portugal, que atuaram ao longo do processo.
"Aberração", diz sindicato da Polícia Penal
O gasto estimado pelo governo com o presídio e o modelo de gestão, junto à iniciativa privada, desagradou o Sindicato da Polícia Penal (Sindppen/RS). Segundo a entidade, o custo de uma pessoa presa no Estado é de cerca de R$ 1,9 mil ao mês, contra os quase R$ 7 mil previstos para a futura unidade de Erechim.
A entidade argumenta que, com o gasto de cerca de R$ 100 milhões ao ano, seria possível construir, por exemplo, três unidades como a Penitenciária Estadual de Porto Alegre, inaugurada em 2018, que conta com 416 vagas e teve investimento de cerca de R$ 30 milhões.
Em outra comparação, a nova estrutura do Presídio Central, em Porto Alegre, tem investimento estimado em R$ 116 milhões. A unidade, que está em fase de construção, terá 1.884 vagas e deve ser concluída em janeiro de 2024.
— Em 30 anos, seria possível viabilizar a construção de dezenas de penitenciárias. Na PPP, serão gastos cerca de R$ 100 milhões ao ano, um custo de R$ 3 bilhões em 30 anos, que é o tempo de contrato. Essa conta não fecha. É um valor muito superior ao que temos na realidade atual. É dinheiro público, do contribuinte, que irá para essa PPP. Nos surpreende e foge da razoabilidade. É uma aberração, algo completamente surreal e absurdo, que nos deixa perplexos. Nós sabemos que a grande maioria das casas prisionais, principalmente no interior do Estado, são muito precárias, improvisadas, que precisam de recursos. É o caso da unidade de Rio Pardo, de Passo Fundo. Porque investir tanto dinheiro em uma PPP? — questiona o presidente do Sindppen/RS, Saulo Felipe Basso dos Santos.
Em 30 anos, seria possível viabilizar a construção de dezenas de penitenciárias. Na PPP, serão gastos cerca de R$ 100 milhões ao ano, um custo de R$ 3 bilhões em 30 anos. Essa conta não fecha.
SAULO FELIPE BASSO DOS SANTOS
Presidente do Sindppen/RS
A concessão foi parar na esfera judicial. Em março de 2022, a Justiça gaúcha chegou a suspender, liminarmente, a concessão de presídios gaúchos à iniciativa privada. O pedido foi feito pelo Sindicato dos Servidores Penitenciários do Rio Grande do Sul (Amapergs). No entanto, em julho, o Executivo conseguiu derrubar a liminar no STF. Nesta semana, o Sindppen/RS afirmou que também pretende ingressar com medidas jurídicas e administrativas contra a PPP.
A entidade também lista outros pontos de divergência em relação ao projeto, como uma possível queda na segurança dentro dos presídios. Santos ressalta que os policiais penais (antigos agentes penitenciários) precisam passar em concurso público, prestam prova prática e ingressam em um curso de formação que dura três meses. Depois, seguem em "constante qualificação" dentro da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).
Assim, a entidade questiona qual o tipo de seleção seria usado para agentes privados, nos casos em que presídios são administrados por PPP:
— Certamente é um processo seletivo muito mais simples, o que fragiliza as casas prisionais e dá poder a facções criminosas. Temos exemplos de PPP em outros Estados, como no Maranhão e na Bahia, e é isso que vemos acontecer.
Além disso, apesar de o governo do Estado afirmar que o trabalho junto aos presos e à segurança da unidade seguirá a cargo dos servidores públicos, o sindicato acredita que as atribuições possam acabar se mesclando.
— Temos emendas federal e estadual que definem que a administração e segurança de casas prisionais é atribuição da Polícia Penal. Esse trabalho cabe aos agentes, aos concursados. No projeto de PPP, fica muito confuso até onde vai a atuação do servidor público e do agente privado. Ao optar por funcionários da empresa, o governo também deixa de nomear colegas que estão aptos a assumir como servidores. Hoje, temos 1.700 pessoas aprovadas em concurso para polícia penal que aguardam ser chamados. Por óbvio, serão prejudicados — argumenta Santos.
O sindicato ressalta que não é totalmente contrário a parcerias com a iniciativa privada, mas afirma que o mais adequado seria utilizar as empresas apenas na construção das unidades, deixando a administração para a Susepe.
Policiais penais farão a segurança, diz secretário
Por outro lado, o secretário Pedro Capeluppi pondera que o modelo atual de presídios no país levou ao caos no sistema prisional. Ele cita uma decisão, do último dia 4, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro.
A Corte exigiu mudanças e deu prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de intervenção com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de detentos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena, além de melhorar aspectos de saúde e higiene dentro das unidades.
— É equivocado comparar o valor gasto com um apenado na PPP e no modelo tradicional, porque o custo que se tem hoje está defasado. É por causa dessa falta de investimentos na área que chegamos a essa situação, de estruturas inadequadas e violações de direitos em presídios. O modelo de PPP busca trazer alternativas para problemas graves, que foram inclusive atestados pelo STF. A parceria com a iniciativa privada oferece uma gestão mais eficiente aos recursos do governo e tem sido um modelo de sucesso em outras áreas, então estamos trazendo para a segurança pública — afirma Capeluppi.
O secretário destaca ainda que o governo "não irá entregar o presídio à iniciativa privada", e que a atividade específica de segurança prisional seguirá a cargo de policiais penais.
Para o Executivo, a busca pela PPP tem como objetivo uma melhora na operação das unidades prisionais e otimização dos gastos públicos no sistema prisional, com atuação focada na ressocialização e reinserção de presos no mercado de trabalho. Um dos principais focos é a recuperação dos apenados, por meio de um tratamento mais digno, e a redução do déficit de vagas.