Em uma noite de dezembro de 2008, o oftalmologista Marco Antônio Becker saiu de um restaurante em um ponto boêmio e conhecido de Porto Alegre e embarcou em seu carro, um Gol que estava estacionado na esquina da Rua Ramiro Barcelos com a Avenida Cristóvão Colombo. Antes de arrancar, foi atingido por ao menos quatro tiros disparados contra o vidro do motorista. Morreu na calçada do movimentado bairro Floresta.
Quatorze anos depois, quatro homens sentam no banco dos réus, nesta terça-feira (27), para responder por um dos homicídios mais rumorosos do Estado. A previsão é de que o júri se estenda até sexta (30). Os trabalhos ocorrem na 11ª Vara Federal da Capital e são presididos pelo juiz federal Roberto Schaan Ferreira.
Serão julgados o ex-andrologista Bayard Olle Fischer dos Santos, acusado de ser o mandante do crime; um ex-assistente dele, Moisés Gugel, que teria intermediado negociações para matar Becker; o traficante Juraci Oliveira da Silva, o Jura, acusado de planejar o assassinato; e Michael Noroaldo Garcia Câmara, que teria sido contratado para executar o homicídio. As defesas dos quatro negam envolvimento no caso (veja o contraponto abaixo).
Conforme a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), Bayard teria ordenado a morte de Becker por vingança, pelo fato de a vítima ter sido responsável pela cassação do diploma de médico do réu.
Como será o julgamento?
- O júri deve durar quatro dias, conforme a previsão da Justiça Federal da Capital, e será transmitido pelo canal da Justiça Federal no YouTube.
- A sessão deve ser iniciada a partir das 9h desta terça-feira, com a formação do Conselho de Sentença, composto pelo jurados. Esse momento não será transmitido, para preservar a identidades dos escolhidos. A etapa deve durar toda a manhã.
- A partir das 13h, os trabalhos prosseguem e devem se estender até o começo da noite, por volta das 20h.
- Ao longo do julgamento, serão ouvidas cinco testemunhas de acusação e 11 de defesa. Na sequência, os réus serão interrogados.
- Passada esta fase, a sessão seguirá com os debates orais da acusação, feita pelo Ministério Público Federal (MPF), e das defesas dos réus. Há a possibilidade, ainda, da réplica e da tréplica.
- Por fim, o juiz se reúne com os jurados para votação dos quesitos. Depois, o magistrado lê a sentença dos réus.
Quem são os réus e por que Becker foi morto?
Quatro homens vão responder pelo assassinato, que, conforme a denúncia aceita pela Justiça, foi uma retaliação comandada pelo ex-andrologista Bayard Olle Fischer dos Santos, 73 anos, colega de profissão de Becker.
]Bayard teve o diploma cassado pelo Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) por recomendação de Becker e sua suposta influência no Conselho Federal de Medicina (CFM).
Por isso, segundo a investigação, Bayard teria cobrado favores de um antigo cliente, o traficante Juraci Oliveira da Silva, o Jura, que atuaria no tráfico de drogas no Campo da Tuca. Jura teria ordenado a capangas que fizessem uma emboscada para Becker.
O ex-assistente de Bayard, Moisés Gugel, 46 anos, teria intermediado as negociações.
Michael Noroaldo Garcia Câmara, o Tôxa, 40, que seria cunhado de Jura na época, teria sido contratado para o homicídio. Seria ele o atirador, que estava na carona de uma moto.
Entre as provas apresentadas pela acusação, estão uma uma moto usada por Michael (idêntica à motocicleta dos matadores); depimentos de testemunhas afirmando que ele tentou se livrar do veículo logo após a morte de Becker e mensagens que integrantes da quadrilha de Jura teriam trocado com um assessor de Bayard.
Há dois anos, no entanto, defesa dos réus apresentou uma nova versão para o homicídio: de que Becker teria sido assassinado por dois policiais militares que o estariam chantageando. Ao se recusar a continuar cedendo às pressões, Becker teria sido morto.
No júri desta semana, a tese pode voltar a ser levantada pelas defesas.
Quem era Marco Antônio Becker?
Natural de Lomba Grande, então distrito de Novo Hamburgo, Becker nasceu em 1948. Ele tinha 60 anos quando foi morto.
Formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1973, especializou-se em Oftalmologia na Universidade Complutense de Madrid, de 1975 a 1976. Foi estagiário, bolsista do governo francês nos hospitais Hôtel Dieu, de Paris, e Edouard Herriot, de Lyon, de outubro de 1976 a setembro de 1977. Exerceu a chefia de Serviços de Oftalmologia no Senegal e na Arábia Saudita, de outubro de 1977 a abril de 1979.
O médico ocupou alto cargos em instituições e entidades da área. Foi presidente-fundador da Sociedade de Oftalmologia do Estado, em 1987, membro Titular do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e ex-presidente da Confederação Médica Latino-Americana e do Caribe.
Foi presidente do Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) de 1993 a 2005, e de 2007 a 2008. Em outubro, dois meses antes de ser morto, se tornou vice-presidente. Foi ainda conselheiro do CFM entre 1994 e 2008.
Na política, atuou como vereador em Novo Hamburgo, pelo PDT, entre 2001 e 2004.
Por que o caso está na Justiça federal?
Após quatro anos tramitando na Justiça estadual, uma reviravolta fez com que o caso fosse submetido à Justiça Federal, cabendo ao MPF oferecer nova denúncia, no lugar do MP-RS.
Isso ocorreu porque, em 2012, o Superior Tribunal de Justiça (STF) decidiu que o processo era de competência da Justiça federal sob alegação de que o motivo do crime tem vínculos com uma decisão da União — no caso, a cassação do registro médico pelo Cremers e suposta influência da vítima no CFM, o que justificaria que o julgamento passasse a tramitar na esfera federal.
O MPF denunciou oito pessoas, sendo seis por envolvimento direto na morte e dois por prestar falso testemunho. A Justiça federal, no entanto, entendeu haver materialidade para pronunciar somente quatro pessoas a júri pelo crime de homicídio qualificado. Assim, os outros quatro réus foram impronunciados, pois não existiam indícios suficientes de autoria ou participação no crime.
Um júri chegou a ser marcado para agosto de 2022, mas foi suspenso três dias antes a pedido do MPF, em razão de um laudo pericial juntado aos autos por parte de uma das defesas dias antes.
Situação dos reús
Atualmente, apenas Juraci está preso, mas por outros crimes relacionados ao tráfico de drogas. Ele está detido na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (PASC).
Os outros três réus respondem a esse processo em liberdade. Bayard e Moisés chegaram a ser presos, mas estão soltos desde 14 de abril de 2011. Michael esteve preso por outro crime até 25 de junho de 2021, quando foi colocado em liberdade.
Contrapontos
- O que diz a defesa de Juraci Oliveira da Silva, o Jura
Procurada nesta segunda-feira (26), a advogada Ana Maria Castaman Walter afirmou que não irá se manifestar.
- O que diz a defesa de Moisés Gugel
Em nota, o advogado Marcos Vinícius Barrios afirmou que o cliente é "vítima de um erro judicial sem precedentes". "Confiamos que a sociedade de Porto Alegre saberá depurar a acusação injusta e absolvê-lo ao final", completou.
- O que diz a defesa de Michael Noroaldo Garcia Câmara
O réu é atendido pela Defensoria Pública da União, que também se manifestou em nota: "A Defensoria Pública da União (DPU) informa que está pronta para exercer a defesa do réu Michael Noroaldo Garcia Câmara, estando convicta da ausência de provas contra ele no processo".
- O que diz a defesa de Bayard Olle Fischer Santos
GZH entrou em contato com o advogado do réu, João Olímpio de Souza, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.