Está tudo pronto para o desfecho de um dos mais célebres casos criminais já registrados no Rio Grande do Sul, o julgamento dos acusados pelo assassinato do médico oftalmologista Marco Antônio Becker, ocorrido há quase 14 anos, em Porto Alegre.
Mas o júri, que envolve quatro réus e deveria começar na próxima segunda-feira (15) na 11ª Vara Federal da Capital, pode ser suspenso mais uma vez. O pedido de adiamento partiu agora do Ministério Público Federal (MPF), que tem dúvida sobre uma prova decisiva juntada ao processo. Uma perícia particular, contratada pela defesa, afirma que a moto apreendida com um dos réus e que seria a utilizada no crime não pertence aos matadores, e é de modelo diferente. Diante da controvérsia, caberá à Justiça Federal decidir se o julgamento ocorrerá mesmo semana que vem.
A expectativa é grande, porque Becker não era um médico qualquer. Quando foi assassinado, em 4 de dezembro de 2008, era vice-presidente e ex-presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), de tal forma que foram designadas dezenas de policiais para investigar o caso. A Polícia Civil levou um ano para concluir que ele foi morto num complô que envolveu quatro pessoas, dentre essas uma que na época também era médico: o andrologista Bayard Olle Fischer dos Santos, acusado de planejar a morte do colega. Ele clinicava no Interior e estava com o diploma de Medicina por um fio. A cassação dele fora recomendada por Becker, conforme apuraram os policiais — ele acabou cassado meses depois.
O crime aconteceu em uma noite quente. Até por isso, às 22h15min, hora do crime, muita gente ainda circulava pela calçada em frente a um restaurante, na esquina da Rua Ramiro Barcelos com Avenida Cristóvão Colombo, ponto boêmio conhecido na Capital. Outras pessoas bebiam lá dentro. Os clientes fugiram correndo quando ouviram o estouro de tiros disparados por dois homens numa moto, que logo se evadiu. O alvo, Marco Antônio Becker, foi atingido por quatro disparos de pistola calibre .40 e morreu ao lado do seu carro, um Gol.
A controvérsia que pode levar ao adiamento do júri envolve a moto usada pelos matadores. A partir de investigações, a Polícia Civil chegou ao nome do suposto condutor da moto dos matadores, Michael Noroaldo Garcia Câmara, que tinha uma motocicleta similar à identificada nas câmeras de segurança da Avenida Cristóvão Colombo e tinha antecedentes. Ele é cunhado de um dos notórios traficantes gaúchos, Juraci Oliveira da Silva, o Jura do Campo da Tuca, na zona leste de Porto Alegre, que fora cliente do andrologista Bayard.
Para concretizar o homicídio do médico que seria seu desafeto, Bayard teria cobrado favores de seu antigo cliente, Jura da Tuca. Conforme a polícia, Jura ordenou que capangas emboscassem Becker. Um dos tripulantes da moto conduzida pelos atiradores seria Michael, cunhado do traficante. Entre as provas elencadas estão uma motocicleta usada por Michael (similar à moto dos matadores), testemunhos que afirmam que ele tentou se livrar do veículo logo após a morte de Becker e mensagens que integrantes da quadrilha de Jura teriam trocado com um assessor de Bayard, Moisés Gugel.
Perícia
Só que a defesa do traficante e do cunhado dele sempre negaram que a moto usada no crime fosse a apreendida com Michael, uma Falcon. Encomendaram uma perícia particular, feita por um perito aposentado que atuava no Instituto-Geral de Perícias (IGP), Joel Ribeiro Fernandes. O laudo dele descarta que a moto dos matadores seja a de Michael. O modelo dos faróis e a posição das luzes, na filmagem, seriam incompatíveis com a do veículo apreendido.
A Defensoria Pública da União, em nome de Michael, juntou esta semana outro laudo técnico, complementar, no qual o perito confirma que a moto de Michael não é a do matador. Diante da controvérsia, três procuradores da República que fazem a acusação solicitaram adiamento do júri.
"O MPF requer análise pericial oficial comparativa entre o vídeo obtido na cena do crime e a moto apreendida nos autos, bem como análise pericial oficial sobre todos os documentos juntados aos atos que tenham sido produzidos pelo profissional Joel Ribeiro Fernandes", relata o documento, ao qual GZH teve acesso. Os procuradores também requerem urgência na perícia, para que o júri seja viabilizado ainda este ano.
A Justiça Federal e o juiz do caso, Roberto Schaan Ferreira, ainda não se pronunciaram a respeito do pedido. Alguns defensores dos réus até querem que o júri seja realizado agora, porque consideram que o próprio MPF, responsável pela acusação, tem dúvidas sobre as provas obtidas e isso ajudará a inocentar seus clientes.
Um ano de investigações, um médico e um traficante acusados
Desde o primeiro minuto após o rumoroso assassinato, em 2008, os agentes vasculharam a vida de Becker, em busca de seus inimigos. Foi investigada a vida pessoal atribulada do médico e, também, indisposições que teria causado como presidente do órgão fiscalizador do exercício da Medicina no Rio Grande do Sul. Um nome se repetiu nos depoimentos, o do médico Bayard Fischer, que teria motivo para desgosto com Becker porque esse endossara seu pedido de cassação.
A investigação durou um ano. Ao final de 2009, o delegado Rodrigo Bozzetto, do Departamento de Homicídios, enviou à Justiça um inquérito no qual apontava Bayard como autor intelectual do plano de assassinato e apontava Jura, o cunhado dele (Michael) e um assistente, de Bayard, Moisés Gugel, como envolvidos nas tratativas para matar Becker. A combinação teria sido feita por mensagens de texto cifradas, que teriam se intensificado às vésperas do assassinato.
Os quatro indiciados viraram réus. Todos negam envolvimento. Todos chegaram a ser presos preventivamente, em 2011, mas foram soltos depois, com exceção de Jura, condenado por outros homicídios e por tráfico. Ele cumpre pena na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS).
Outras teses surgiram ao longo dos anos, tentando desmentir esse complô. Em 2020, advogados dos réus apresentaram à Justiça Federal seis testemunhas que afirmam que Becker teria sido assassinado por dois policiais militares que o estariam chantageando. Ao se recusar a continuar cedendo às pressões, o médico teria sido morto. A própria moto usada no crime teria sido presente de Becker aos assassinos, seus ex-amigos.
A versão, escorada em depoimentos de pessoas que dizem ter ouvido a confissão dos próprios assassinos, deve ser mais uma vez levantada pelas defesas durante o júri que começa nesta segunda-feira.
O caso chegou a ter etapas na Justiça Estadual, mas após batalha jurídica, foi transferido para a Justiça Federal porque a vítima, Becker, compunha o Conselho Federal de Medicina e sua morte pode estar relacionada a isso.
A previsão da própria Justiça Federal é de que o julgamento possa durar até sexta-feira (19), devido ao elevado número de réus.
A situação dos réus e suas alegações
Bayard Olle Fischer Santos
Está em liberdade. Ao longo dos anos, formou-se em Direito e atua para um escritório de advocacia. Alega inocência. O seu advogado, João Olímpio de Souza, diz que seu cliente "ele se sentiu tão injustiçado que cursou a faculdade de Direito, para poder também se defender". Olímpio afirma que "apesar de não existir mais julgamentos 'intra muros' (o caso estava em segredo de Justiça), agora vai ser o momento de a sociedade tomar conhecimento da realidade dos fatos".
Juraci Oliveira da Silva
Está preso desde 2010, por outros crimes. No momento está em Campo Grande (MS), numa penitenciária federal. Nega qualquer envolvimento no crime. A sua defensora, Ana Maria Castaman Walter, sustenta que "os jurados farão Justiça absolvendo Juraci desta acusação".
Michael Noroaldo Garcia Câmara
Esteve preso algumas vezes entre 2009 e 2021. Está solto. É defendido pela Defensoria Pública da União, que, em nota, afirma "que está trabalhando incessantemente na defesa do assistido e que tem convicção de sua inocência, o que será demonstrado em plenário perante os jurados".
Moisés Gugel
Está em liberdade. Ficou preso por suposto envolvimento no assassinato de Becker durante um período, em 2011. O advogado de Moisés, Marcos Vinícius Barrios dos Santos, alega que o cliente é inocente. "Os debates e as teses defensivas serão expostas em plenário e não via imprensa. Adianto apenas que tenho convicção que a sociedade de Porto Alegre saberá depurar a podridão escondida neste processo, que tramitou em segredo de justiça para que não viesse à tona todas as máculas existentes. Moisés é inocente e foi injustiçado durante esses 12 anos".
O que diz o Ministério Público Federal (MPF):
Em nota, o MPF informou que "espera um julgamento baseado no debate franco e leal entre acusação e defesa, mas, principalmente, que os jurados façam justiça, num caso que aguarda há quase 14 anos por uma decisão em memória à vítima e sua família".