Está de posse da Justiça Federal uma nova versão para um crime que entrou para a história, o assassinato do oftalmologista Marco Antônio Becker, 60 anos, em 4 de dezembro de 2008. Os quatro tiros de pistola .40 o atingiram quando saía de um restaurante no bairro Floresta, em Porto Alegre, por volta das 22h15min. O médico, que ingressava no seu carro, caiu morto na calçada.
O assassinato virou celeuma por diferentes motivos, a começar pelo fato de que a vítima era vice-presidente e ex-presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers). A comoção pública ficou maior ainda porque o homem responsabilizado por planejar a morte de Becker — e que chegou a ficar preso por suspeita do crime — também era médico: Bayard Ollé Fischer dos Santos, um andrologista que clinicava no Interior. Seria vingança contra o fato de o vice-presidente do Cremers ter recomendado a cassação do diploma de Bayard, por erros médicos. Teria, para isso, contado com ajuda de uma quadrilha, que executou seu desafeto.
Mas agora, quase 12 anos após o crime, surge nova versão para o homicídio, apresentada por advogados de defesa de alguns réus do caso: Becker teria sido assassinado por dois policiais militares que o estariam chantageando. Ao se recusar a continuar cedendo às pressões, Becker teria sido morto. GZH procurou a viúva do oftalmologista, mas ela não quis falar sobre o assunto.
Essa reviravolta é resultado de uma investigação feita pela defesa de dois réus, um deles defensor de Michael Noroaldo Garcia Câmara (envolvido na execução do homicídio) e o advogado Marcos Vinícius Barrios dos Santos (defensor de Moisés Gugel, assistente do médico Bayard Fischer). Os dois se embasam em pelo menos seis testemunhas que teriam revelado ouvir dos próprios PMs a confissão de que assassinaram Becker.
Essas admissões teriam ocorrido quando os PMs já não estavam mais na Brigada Militar: ambos foram expulsos da corporação pela suspeita de envolvimento em assassinatos. Conforme depoimentos colhidos pelos advogados, um dos casos rumorosos no qual os dois ex-policiais estariam envolvidos é o assassinato de um militar, durante um assalto frustrado. Eles não foram nem sequer indiciados por isso, mas teriam, em conversas informais no presídio, admitido envolvimento. Outro caso é a morte de um jovem numa boate (os dois trabalhavam como seguranças), em que um deles virou réu. Este caso ainda não foi julgado.
Cinco das seis testemunhas ouvidas pelos advogados confirmam ter ouvido dos próprios ex-PMs a admissão de que assassinaram Marco Antônio Becker. Um deles teria dito que a moto usada no homicídio tinha sido presente do médico, quando ainda eram amigos. A suposta confissão aconteceu durante um culto religioso no Presídio Militar (junto ao Batalhão de Operações Especiais, o Bope, na Capital), onde a dupla estava presa. Um dos ex-brigadianos teria chorado ao dizer que estava pagando agora por crimes que cometeu no passado, entre eles a morte do médico.
A versão é confirmada por um advogado, um servidor público, dois ex-PMs e um dono de empresa de segurança. Todos estavam presos e conheceram os dois ex-policiais na prisão. Nenhum deles conheceria Becker ou os acusados pela sua morte.
Algumas conclusões da apuração dos advogados são de que o envolvimento dos dois PMs em outros homicídios está comprovado e um dos projéteis que causaram a morte de Becker era proveniente de munição cedida pela Força Nacional de Segurança à Brigada Militar (era usada por PMs).
Ainda segundo os advogados, pelo menos cinco testemunhas relatam ter ouvido dos próprios ex-PMs a admissão de que assassinaram Becker, e uma sexta testemunha, o porteiro de um prédio próximo ao local do homicídio, reconheceu um dos ex-PMs, por foto, como uma pessoa que chegou com uma moto para conferir se Becker estava morto. "Veio conferir, ver se matou ou não matou", descreveu o homem.
O inquérito policial e a Justiça
A versão original para o assassinato, dada pela Polícia Civil e que embasa o julgamento na 11ª Vara Federal de Porto Alegre, é diferente. Becker teria sido morto numa retaliação do andrologista Bayard Fischer, que estaria com o diploma de médico por um fio, por recomendação de Becker. Para concretizar o plano, o andrologista teria cobrado favores de um antigo cliente, o traficante Juraci Oliveira da Silva, o Jura do Campo da Tuca. Conforme a polícia, Jura ordenou a capangas que fizessem uma emboscada.
O atirador, que estava na carona de uma moto, seria Michael Noroaldo Garcia Câmara, cunhado de Jura. Entre as provas elencadas estão uma moto usada por Michael (idêntica à motocicleta dos matadores), testemunhas que dizem que ele tentou se livrar do veículo logo após a morte de Becker e mensagens que integrantes da quadrilha de Jura teriam trocado com um assessor de Bayard.
Michael, Jura, Bayard e seu assistente, Moisés Gugel, viraram réus. Todos negam envolvimento. Michael e Jura estão hoje presos por outros crimes, e os outros dois réus estão soltos. Não há data marcada para o julgamento.
A 11ª Vara Federal recebeu a nova versão, mas informa que todo o processo está sub judice na segunda instância (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), porque advogados dos réus impetraram recursos tentando impedir o júri. Com isso, qualquer pedido da defesa para que a nova versão anule a denúncia feita anteriormente deve passar pelo TRF4. Eventuais novas testemunhas poderão ser arroladas pela defesa na fase da Sessão Plenária do Júri, caso o julgamento seja mantido. As testemunhas poderiam tentar convencer os jurados da inocência dos réus.
Ex-preso relata que ouviu confissão dos supostos matadores
Uma das seis testemunhas que narram a nova versão para o assassinato do médico Marco Antônio Becker concordou em falar para GZH. Ele esteve preso e conviveu com os dois ex-policiais militares que seriam autores do homicídio. Esse homem diz que a primeira vez em que ouviu isso foi quando colegas de uma galeria no Presídio Central da Capital contaram que, num culto, um dos ex-PMs chorou e admitiu ter matado Becker e cometido um latrocínio em outra ocasião:
— Ele acreditava que estava pagando por esses pecados, mesmo sem que a Justiça ou a polícia soubessem que era autor dos crimes. Foi novidade para nós. Mas na prisão é assim, todo mundo acaba falando do que fez, mais dia, menos dia.
O ex-preso disse à reportagem que, posteriormente, ouviu um dos ex-PMs admitindo ter participado da morte de Becker, numa conversa coletiva. Questionado por que falou agora nisso, o entrevistado disse que tenta impedir uma injustiça.
Esse ex-preso já relatou a nova versão à Justiça Federal, em depoimento.
A reportagem também ouviu o defensor de Bayard Fischer, o principal acusado de planejar o assassinato de Marco Becker. É o criminalista João Olímpio de Souza. Ele diz que não conhece detalhes, mas que a nova versão não o surpreende, "diante da fragilidade do inquérito e da tentativa desesperada que fizeram para culpar o meu cliente".
GZH não conseguiu contato com os ex-PMs que estariam envolvidos na morte de Becker. Os dois estão em liberdade. Um deles, após vários anos de cumprimento de pena por diversos homicídios praticados quando integrava um grupo de extermínio. O outro aguarda julgamento por assassinato.
Delegado continua convicto da culpa dos réus
O Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, recebeu dos advogados dos réus no Caso Becker a investigação que traz a nova versão para o assassinato. A delegada Vanessa Pitrez, diretora do DHPP, diz que todo o material foi lido e remetido para a Justiça Federal, que deve decidir se o caso é reaberto ou prossegue com o julgamento.
— Após finalização do inquérito e início do processo criminal, a polícia (Civil ou Federal) perde a atribuição sobre o caso. Somente com pedido judicial poderá ser reaberta a investigação. A nova versão é bastante curiosa, mas em termos probatórios, difícil, porque a investigação na época foi muito boa — opina Vanessa.
GZH ouviu também o delegado responsável pela investigação enviada ao Judiciário, Rodrigo Bozzetto, hoje radicado no Interior. Ele diz que os dois PMs não constavam entre os suspeitos. Mas um dos advogados diz que, sim, esses PMs foram ouvidos e depois, descartados do caso.
Bozzetto admite que é direito dos advogados dos réus procurarem novas pistas e natural que aleguem inocência, mas continua convicto de que os indiciados em 2009 são os responsáveis pela morte de Becker. Seja pela troca de mensagens improvável entre o assessor do médico Bayard e um grupo de traficantes, seja pelas provas reunidas contra o suposto matador, Michael, pondera o delegado.
— O Michael usava pistola igual à do matador, motocicleta igual à do matador e falou que precisava se livrar da moto, logo depois do crime. O cunhado e chefe dele, Jura, era cliente do médico que era inimigo declarado do Becker. Coincidências demais não existem — resume o delegado.