Inaugurado em junho com a promessa de acabar com o problema de presos em delegacias e viaturas, o Núcleo de Gestão Estratégica do Sistema Prisional (Nugesp) completará seis meses de funcionamento no próximo dia 27 com números que trazem otimismo às autoridades da segurança pública do Rio Grande do Sul. De forma geral, a avaliação de diferentes órgãos envolvidos no dia a dia do centro de triagem é de que a obra melhorou a porta de entrada para o sistema prisional na Região Metropolitana.
Por outro lado, ainda há pontos para avançar, como a ausência de servidores do Instituto-Geral de Perícias (IGP) no local e a falta de uma equipe de saúde fixa, com médico e enfermeiro.
— Sem dúvida nós vivemos um novo tempo, uma nova realidade — comemora o secretário estadual de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, Mauro Hauschild.
Localizado na Rua Dr. Salvador França, zona leste de Porto Alegre, o Nugesp já recebeu 9,3 mil presos desde a inauguração. A estimativa do governo do Estado é de que circulam pelo local cerca de 60% dos presos diários de todo o Estado. É como se, a cada 10 pessoas presas no Rio Grande do Sul em um dia, seis fossem levadas para o centro de triagem.
O núcleo recebe apenas os detidos nas 26 comarcas da Região Metropolitana.
De forma simplificada, o Nugesp funciona como um ponto intermediário entre a detenção na rua e o sistema prisional. Os policiais que fazem a prisão em flagrante ou cumprem um mandado de prisão que estava em aberto transportam os suspeitos detidos em uma viatura até o complexo na Zona Leste. No local, o preso é identificado, recebe roupas e kit de higiene, vai para uma cela compartilhada com até oito pessoas, tem direito a atendimento de saúde e psicossocial e aguarda pela audiência de custódia.
É na audiência que o juiz irá determinar se o preso será devolvido às ruas ou levado preventivamente para uma casa prisional. Em 54,8% dos casos registrados, desde junho, os presos foram liberados de forma provisória. Em 31,5% das prisões, os detidos foram encaminhados para presídios. E em 8% dos casos, foram liberados com tornozeleira.
Em média, os presos permanecem até seis dias no Nugesp, mas o período pode variar de acordo com o tempo necessário até que se encontre vaga em uma casa prisional.
— É uma nova forma de tratar as pessoas. Se há falhas, é normal dentro do que vivenciamos no sistema prisional. Considerando todo o empenho do Estado para inaugurar o Nugesp, prover o corpo técnico, fazer a audiência de custódia, que é o mínimo para essas situações, temos de enaltecer a forma como está funcionando — avalia a defensora pública Cintia Luzzatto, dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal (Nudep).
Sem presos em delegacias
O chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, delegado Fábio Motta Lopes, confirma que, desde a inauguração do centro de triagem, não houve mais presos em delegacias na Região Metropolitana.
— A (avaliação é a) melhor possível. Sem presos em DP (Delegacia de Polícia), desde a criação do Nugesp.
O promotor de Justiça Rodrigo da Silva Brandalise, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública do Ministério Público do RS, concorda que o Nugesp melhorou a porta de entrada para o sistema prisional.
— No que diz respeito à situação de presos em delegacias, o Nugesp trouxe uma solução bastante adequada. Não tivemos mais esses casos sendo narrados na região — ressalta o promotor.
Outro ponto positivo destacado pelas autoridades é a alta frequência de apresentações de presos nas audiências de custódia. A média de junho até dezembro é de 82,3% de apresentação. Se considerar apenas os últimos 30 dias, o percentual sobe para 92,2%.
Isso significa que, desde a implementação do Nugesp, vem crescendo o número de presos que são levados até a audiência com o juiz, que precisa ser realizada em até 24 horas após a prisão.
— Desde o fim de junho, a máquina se aprumou, o engendramento estatal se aprumou. A realização de 82% dos agendamentos é algo muito exponencial — diz o juiz-corregedor da área de Execução Penal do Tribunal de Justiça, Antonio Carlos de Castro Neves Tavares, que também coordena o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.
Estrutura
GZH visitou o Nugesp na primeira semana de dezembro e constatou que a estrutura funciona como uma espécie de fortaleza para onde os presos são levados. No complexo, existem diversos edifícios separados: os cinco módulos de detenção e salas de identificação dos detentos, de ortodontia, de atendimento básico de saúde e de audiência de custódia. Existe ainda uma lavanderia, que é operada por um grupo de apenados que já estão cumprindo pena e conseguem reduzir o tempo de prisão com o trabalho.
Durante a visita, a reportagem percorreu uma galeria com as celas vazias e verificou que as estruturas estavam limpas e em bom estado de conservação.
Até as 15h40min desta quarta-feira (14), havia 423 detentos para as 708 vagas totais do Nugesp. Ou seja: 41% das celas estavam desocupadas, retrato bem diferente do encontrado em diversas casas prisionais do Estado, onde a superlotação é comum.
Desafios
Há pelos menos três pontos que permanecem em aberto para o pleno funcionamento do centro de triagem. O primeiro deles, aparentemente o mais fácil de ser resolvido, é a instalação de um scanner na porta de entrada do complexo.
Hoje, os presos são levados dentro das viaturas até o pátio que fica no interior do centro de triagem. Em seguida, eles são revistados por um grupo de policiais penais da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Quando o scanner estiver funcionando, não será mais necessária a revista feita pelos servidores, o que deve tornar o trabalho mais fácil e seguro.
Segundo a Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, o equipamento começará a ser instalado pela empresa responsável na próxima segunda-feira (19).
Os outros dois itens são mais complexos. Na mesma porta de entrada onde será instalado o scanner, era esperado que um grupo de servidores do IGP estivesse trabalhando. No entanto, o órgão ainda não designou os funcionários públicos para atuar no local. Por este motivo, o exame de corpo de delito segue sendo realizado no Palácio da Polícia, localizado a 4 quilômetros do centro de triagem. Os presos são submetidos ao exame na sede da Polícia Civil, e depois, transportados para o Nugesp.
A avaliação do governo do Estado é de que a falta do IGP não tem atrapalhado o funcionamento do núcleo, mas a situação não é ideal, uma vez que um dos principais objetivos da obra era justamente integrar todos os órgãos de Estado no mesmo local.
O Chefe da Polícia Civil, Fábio Motta Lopes, considera que a ausência do IGP no Nugesp é "contornável", mas acaba demandando mais tempo e deslocamento dos policiais.
— Se tivesse médico lá, eu só deslocaria diretamente para o Nugesp e desceria o preso de nossas viaturas uma única vez. Tenho que parar no Palácio (da Polícia), então gasta-se mais tempo com isso, embora seja algo contornável. Mas o ideal é que houvesse toda a estrutura lá — explica o delegado.
O promotor Rodrigo da Silva Brandalise também pondera que a falta do IGP é um ponto a ser melhorado.
— Quando se concentra vários atores processuais no mesmo local, fazendo o mesmo tipo de atividade, a gente consegue visualizar uma melhor organização do ingresso no sistema (prisional). O principal detalhe a ser melhorado é a necessidade de implementação do Instituto-Geral de Perícias lá — pondera.
Unidade Básica de Saúde
O terceiro ponto inconcluso é a instalação de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) dentro do complexo, responsabilidade que teria ficado a cargo da prefeitura de Porto Alegre, segundo o governo do Estado. Esperava-se que haveria uma equipe de saúde completa, com médico, enfermeiro e técnico de enfermagem, disponível 24 horas. Ou que, no mínimo, uma equipe de saúde atuasse 40 horas semanais no local.
Até o momento, no entanto, a Secretaria da Saúde da Capital ainda não designou equipe de saúde para a função. Desde a inauguração, o atendimento tem sido feito de forma improvisada por uma equipe que atua no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), localizado ao lado do centro de triagem, duas vezes por semana.
— O Nugesp precisa melhorar o atendimento de saúde. Muitas vezes o preso chega machucado, precisando de atendimento do IGP para saber de onde é oriundo aquele machucado, e precisamos de atendimento básico mesmo, atendimento relacionado à tuberculose e a infecções sexualmente transmissíveis, para que haja uma adequada triagem — observa Tavares, do TJ.
O governo do Estado enviou ofício à prefeitura da Capital em 13 de outubro, cobrando a instalação da UBS, mas não obteve resposta. Um segundo documento seria enviado nesta quarta-feira.
— Falta vontade política — critica Hauschild.
Contrapontos
Em nota enviada à reportagem, o IGP afirmou que já selecionou os servidores que deverão atuar no centro de triagem, mas não designou os profissionais em razão da ausência da UBS. O órgão interpreta que, sem um médico responsável no local, qualquer emergência teria de ser atendida pelo perito médico-legista do IGP, o que provocaria "desvio de função".
"Para realizar os atendimentos no Nugesp, o IGP considera necessário o funcionamento concomitante de uma Unidade Básica de Saúde no local, que está prevista para atender o núcleo, de modo a assegurar o atendimento clínico aos apenados que porventura precisem de auxílio. Sem a presença de um médico responsável, qualquer emergência teria de ser atendida pelo perito médico-legista do IGP, com duas implicações: o desvio de função e a inviabilização da prova pericial, que não pode ser fornecida por profissional que possua relação com o custodiado. Tão logo essa providência seja tomada, o IGP poderá iniciar os atendimentos. Já foram selecionados servidores para atuarem nos horários em que médicos clínicos estiverem presentes", diz a nota.
Já a Secretaria de Saúde de Porto Alegre afirmou que "o Governo do Estado não fez o repasse dos recursos" para a implementação da UBS.
A Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS) rebateu a afirmação da prefeitura da Capital por meio de uma nota enviada à GZH:
"A Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS) informa que as equipes de saúde prisional são financiadas com recursos do Sistema Único de Saúde. Os municípios que possuem estabelecimentos prisionais, dada a municipalização da saúde, credenciam-se junto ao Ministério da Saúde para recebimento de recursos federais, que representam cerca de três quartos do valor mensal, e realizam também credenciamento junto à Secretaria Estadual de Saúde (SES), para receberem complementação deste financiamento, conforme a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP).
Embora as tratativas para implantação da UBS Prisional no Nugesp tenham iniciado já no mês de março de 2022, a prefeitura de Porto Alegre não solicitou a adesão ao repasse dos recursos federais antes do prazo imposto pela lei eleitoral.
O tema foi pauta exclusiva de grande reunião conjunta entre Poder Judiciário, SJSPS, SES e município de Porto Alegre, com a presença, inclusive, do prefeito Sebastião Melo, realizada em 27 de julho, no Palácio da Justiça. A deliberação do encontro foi de que uma das três equipes de saúde da Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA), que está passando por histórica obra de demolição e reconstrução, subutilizada em razão da drástica diminuição no número de presos (atualmente com 1.526 apenados), fosse transferida para o Nugesp, mesmo que temporariamente, até que o município cumprisse com as adesões.
As três equipes que atuam na CPPA estão devidamente credenciadas e habilitadas a receberem repasses, o que não causaria ônus ao município.
Vale destacar que o Nugesp, inaugurado em 27 de junho, foi entregue com Unidade de Saúde completamente equipada, inclusive para atendimentos de saúde bucal. Além disso, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) dispõe de odontólogo, psicólogos e assistentes sociais atuando no local."
Novas unidades
Pensando nos próximos quatro anos, a Secretaria de Justiça sugeriu ao governo de transição a implantação de novas unidades do centro de triagem no Interior do Estado, a começar por Caxias do Sul, segundo maior município gaúcho.
— Esse é um processo que depende de recursos e projetos, mas a boa experiência realizada em Porto alegre deve ser no futuro replicada. Caxias, em um primeiro momento, Passo Fundo, Pelotas ou Rio Grande e Santa Maria são cidades que têm um volume de demanda de prisões diárias e de audiências de custódia, naquelas regiões, que comportariam novas unidades do Nugesp — diz Hauschild.
O núcleo também despertou o interesse de outros Estados: o local já recebeu visitas de comitivas de Pernambuco e de Alagoas, que pretendem adaptar o modelo para as suas realidades.