Quando assumiu a Secretaria da Segurança Pública do Estado, em abril deste ano, Vanius Santarosa havia se aposentado cerca de dois meses antes da Brigada Militar. O descanso durou pouco. A partir de então, foram quase nove meses intensos, que devem se encerrar em 31 de dezembro. Na última sexta-feira (23), o governador eleito Eduardo Leite anunciou novo nome para assumir o cargo em 1º de janeiro: o delegado da Polícia Federal e ex-secretário de Segurança do Ceará, Sandro Caron.
Na última semana à frente da pasta, Santarosa falou à Rádio Gaúcha e a GZH nesta segunda-feira (26). O secretário admitiu que o combate à violência doméstica segue sendo calcanhar de Aquiles para a segurança no Estado. O Rio Grande do Sul fechará 2022 com mais casos de feminicídios dos que os registrados no ano passado. Até o momento, foram 105 mulheres assassinadas em contexto de gênero, enquanto em todo 2021 foram 97. Quando olhamos para anos anteriores, vemos que somente em 2018 o Estado teve número mais alto desse tipo de delito, com 116 casos.
Santarosa abordou ainda outros temas, como as disputas entre facções criminosas que geraram episódios bárbaros, como arremesso de duas cabeças no meio da rua na zona sul de Porto Alegre e sequências de violentos ataques a tiros dentro de comunidades conflagradas. Admitiu que essas ocorrências lhe tiraram o sono diversas vezes. Falou ainda sobre o processo de transição para o novo secretário e os planos a partir de janeiro.
Confira a entrevista abaixo:
Serão quase nove meses à frente da segurança pública do Estado. Como o senhor avalia esse período, e qual foi seu maior desafio?
Meu compromisso era com governador Ranolfo (Vieira Júnior), de estar à frente da pasta esses nove meses. O compromisso era esse, dar continuidade ao trabalho que o então vice-governador e secretário da segurança vinha fazendo. Além de todos os desafios, acho que esse era o maior deles, dar continuidade a um trabalho no qual teu antecessor era o próprio governador. Acredito que conseguimos dar essa continuidade, mantendo a política de segurança de redução de indicadores criminais. Estamos fechando o ano com números menores em todos os indicadores, com exceção do feminicídio. Quando se compara ano fechado com ano fechado.
Como o RS deve encerrar o ano em relação aos indicadores de criminalidade?
Se nós compararmos o ano de 2021 com 2022, no ano passado tivemos 2.043 pessoas que perderam a vida de forma violenta, neste ano, hoje estamos com 1.988. Então, a projeção estatística nos mostra que vamos fechar o ano com números menores. No ano passado, estávamos em reclusão social, com menos pessoas circulando nas ruas, menos veículos circulando. É proporcional: mais veículos circulando, maior a quantidade de roubos de veículos; maior quantidade de pessoas circulando, maior quantidade de roubos a pedestres. Mas, mesmo assim, os números mostram (variação) de 2.043 para 1.988 mortes violentas; roubos a pedestres, no ano passado, (foram) 29.522, nós estamos com 25.900. Roubo de veículos, 4.940 no ano passado, e até agora 4.403. Ou seja, todos apresentam queda.
O senhor afirmou hoje que o RS já teve 105 feminicídios em 2022, o que supera todo ano passado. Por que é tão difícil impedir que as mulheres sejam mortas dessa forma?
É um crime muito difícil de combater porque acontece no seio familiar, entre quatro paredes, longe da vista das pessoas. O feminicídio é o ápice da violência doméstica, que começa com agressões verbais, depois passa para a agressão física e culmina com a morte. Um número muito pequeno de mulheres — dessas 105, 20 delas — tinha medida protetiva. A grande maioria não tinha nenhum tipo de registro policial. Para combater isso, tem que dar condições para essa vítima se sentir à vontade para expor essa intimidade dolorida. O pontapé inicial é da vítima, não tem como o Estado perceber que aquela pessoa está sendo vítima. Esse foi um desafio muito grande esse ano, estimular essas mulheres. Para mudar isso, precisa educação, trabalhar nas escolas, para que as crianças que vivem nesse ambiente com violência possam ser instruídas de que aquilo não é normal. Esse é um trabalho que demora para dar resultado. Mas é preciso educação para mudar essa cultura de que o homem é o proprietário da mulher.
Sempre que uma mulher, mesmo com medida protetiva, é assassinada, sabemos que algo falhou. Uma das iniciativas que está sendo implementada no RS é o uso de tornozeleiras em agressores. Quando efetivamente isso será colocado em prática?
Em janeiro tem o primeiro lote de tornozeleiras sendo entregue pela empresa. É uma tornozeleira diferente, um equipamento inédito. Quando o agressor tiver potencial homicida, o juiz poderá deferir a colocação da tornozeleira. Dada autorização, a vítima receberá o celular, ele a tornozeleira, e se ele entrar numa área num raio inferior a 500 metros, a tornozeleira começa a vibrar, ele sabe que está ficando próximo da vítima. No celular dela, vai receber um mapa georreferenciado. Isso dá tempo para ela se abrigar, fugir, pedir socorro e, paralelamente a isso, a central de monitoramento vai ter um setor com operadores dedicados exclusivamente para fazer o monitoramento dessas tornozeleiras. Esses operadores vão acionar guarnições para fazer a abordagem. Esse sistema está sendo posto em prática com objetivo de proteger mais ainda as mulheres que têm medida. Começa por Porto Alegre e Canoas, temos contratado até 2 mil conjuntos. A ideia é implantar nesses dois grandes municípios e depois tentar ampliar de forma que se possa atingir o Estado inteiro.
Qual foi até agora o momento mais complexo na sua gestão na secretaria? Foi o começo ou algum evento pontual?
Momentos complexos a Secretaria de Segurança Pública proporciona diariamente. O momento complexo são as situações, por exemplo, dessa disputa de território de três grupos organizados. Isso causa inquietação na população. Tivemos dois episódios de cabeças humanas (encontradas na rua) nesse local que estão disputando na Cruzeiro do Sul. É uma facção que usa essa técnica para causar medo e pânico nos rivais. O outro ponto que foi bastante complicado e a resposta foi rápida foi aquele atentado no Campo Novo, com 26 baleados, que também foi orquestrado por grupo criminoso. Esse foram dois pontos desse ano complicados, difíceis, porque tínhamos que dar uma resposta rápida. São momentos em que tu perdes o sono no sentido de criar estratégias para combater e impedir que aquilo volte a acontecer. A segurança pública é uma luta diária. É um jogo de gato e rato.
Quando acontece um caso como de um menino de 12 anos morto enquanto estava cortando o cabelo numa barbearia ou uma adolescente morta num ataque a tiros, enquanto se divertia num bar, isso nos choca como sociedade. Como impacta para o senhor, como secretário?
Da mesma forma, impacta. Tenho filhos. São ações muito traumáticas. São imagens muito agressivas, muito pesadas. Como gestor da pasta, tu te vês na obrigação de duas coisas: primeiro, prender os agressores e, depois, empregar estratégias para que aquelas ações não voltem a acontecer.
Sabemos que essa disputa entre facções levou inclusive ao aumento dos homicídios ao longo do ano aqui em Porto Alegre. O que o senhor entende que precisa ser feito para dominar esses grupos que comandam os homicídios? É descapitalização, é isolamento de lideranças?
São várias ações, mas as principais delas são a prisão e descapitalização. Um grupo criminoso do Vale do Sinos foi alvo de uma operação, em maio, com retirada de mais de R$ 50 milhões em imóveis e veículos. Depois, veio a operação na zona leste (de Porto Alegre), contra outro grupo, que descapitalizou eles em R$ 24 milhões, que fazia a lavagem de dinheiro do tráfico em postos de gasolina. Foram várias ações com objetivo de descapitalizar esses grupos criminosos. Houve muitas prisões desses líderes. Nossa missão é retirar esse criminoso de circulação e alcançá-lo para a Justiça com uma prova robusta, para que possa aplicar uma pena e que ele fique maior tempo possível afastado das ruas. Quando ele está dentro do sistema prisional, não é minha pasta, mas trabalhamos integrados. Ele não pode ter comunicação com o mundo externo porque muitas ordens de execuções partiram de dentro do sistema prisional. Estão sendo instalados bloqueadores de celulares. São 15 penitenciárias que estão recebendo os bloqueadores, na Pasc (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas) já está funcionando, estão instalando em Rio Grande, e no primeiro semestre devem concluir os outros que faltam. Isso faz com o que o preso tenha comunicação com o mundo externo dificultada. Quando são identificados líderes que emitem ordem de dentro do sistema prisional, tenho que dificultar a comunicação dele com mundo externo. Se cortei o telefone e ele continua emitindo ordens, ela está vindo pela visitação. Então transferimos para outras penitenciárias distantes e isso diminui muito o contato dele com mudo externo. Aqui estamos construindo o nosso presídio com celas com regime diferenciado, com restrição de contatos com outros presos e controle de visitações, semelhante aos presídios federais. São medidas para impedir que ele possa enviar ordens para crimes de dentro do sistema prisional.
Ainda que represente a minoria, nesse ano tivemos alguns episódios nos quais policiais são suspeitos de crimes. Tivemos o caso de São Gabriel e o recente num supermercado em Canoas, por exemplo. Como se encara esses casos, e como se previne isso, é na formação do policial?
Todos os dias são 15 mil pessoas abordadas no RS e muitos poucos casos apresentam problema. Quando se trabalha com tecnologia ou equipamento, se apresentar falha, é só retirar. Agora, quando esse equipamento que falha é o ser humano, tu consertas isso com instrução. Temos preocupação muito grande com formação. Todos os dias, em média, a Brigada Militar enfrenta cinco confrontos, nos quais são disparados um total de 20 tiros. E você não houve falar de pessoas baleadas de forma errada, por quê? Treinamento. Analisando o caso de São Gabriel, eles tinham treinamento. Mas não sabemos o que passa na cabeça do ser humano para fazer uma coisa dessas. Ali houve um procedimento que não era previsto em nenhum dos nossos manuais. Eles rasgaram todos os procedimentos. Colocaram no documento que abordaram e liberaram. Mas eles pegam, colocam na viatura e largam a cinco quilômetros do local. Não está previsto isso em local nenhum. Essas coisas são prevenidas com treinamento e quando acontecem são resolvidas com uma Corregedoria muito rígida. Na BM, por ano, em média, de 15 a 20 policiais são desligados por algum tipo de problema. Na Polícia Civil, que tem efetivo menor, são de dois a três por ano. Coibimos isso com muito treinamento, treinamento rígido. Hoje temos uma turma de 700 alunos soldados sendo formados (devem se formar em abril), que serão pulverizados pelo Estado inteiro. Eles saem da formação com todo procedimento padrão para tudo. Mas quando ele foge e por conta própria muda aquele padrão, aí a Corregedoria entra no circuito, com a maior rigidez possível. Não concordamos, não compactuamos e somos os maiores interessados na transparência desses casos, isso tanto para punir o mau policial, e para usar isso para preparar o treinamento, e impedir que novos casos venham a acontecer.
Como é sua relação com delegado Sandro Caron e como deve ser essa transição?
Quando eu era tenente, nos idos dos anos 1990, eu fiquei um período à disposição da Polícia Federal para fazer ações conjuntas porque eu trabalhava com investigação de tráfico de drogas, então, tive oportunidade de ficar um tempo trabalhando com a Polícia Federal. Fiz muitos amigos e tenho relação muito próxima com a PF, e em especial com o delegado Caron, que é um gaúcho, amigo, conheço ele de longa data. Vínhamos ao longo desse ano trocando informações sobre segurança pública, ele como secretário de segurança do Ceará, eu como secretário de segurança aqui do RS. Os Estados, apesar das suas diferenças, a filosofia de trabalho é a mesma. Trocamos muitas informações sobre o que está dando certo lá ou aqui. Não é feio copiar o que está dando certo. Com relação à transição, vou dar todo apoio, ajuda, que ele precisar, para que possa assumir a pasta e dar continuidade a essa atividade aqui no RS. Vai ser um prazer auxiliar meu amigo Caron na continuidade do desafio de melhorar a vida dos gaúchos.
Quais seus planos a partir de janeiro?
Durante esse período, a família acabou ficando com tempo menor disponível. Eu tenho filhas, esposa, que acabaram se privando da minha convivência. Pelo menos agora quero tirar umas férias e ver o que acontece. Mas eu sou movido a desafios, então, tenho formação no segmento aeronáutico, e o mercado é vasto para ocupar alguma atividade ao longo do ano que vem, mas sem planos.