Os episódios de violência na comunidade onde vivia, no bairro Cascata, na zona sul de Porto Alegre, faziam Eliezer Samuel Lucas, 12 anos, ter medo de sair de casa. Foi assim na noite de 26 de setembro, quando a mãe Renata Silveira Lucas, 40 anos, sugeriu ao caçula que fossem cortar o cabelo. Receoso, o garoto respondeu que naquele horário era perigoso e, por isso, preferia ir outro dia. Na tarde seguinte, o menino estava numa barbearia perto dali quando o local foi atacado. Alvejado repetidas vezes, não sobreviveu, assim como Edgar Rodrigues Lisboa, 26, que lhe atendia. O crime completa um mês nesta quinta-feira (27), sem autores presos.
Ao longo do último mês, Renata viu os dias passarem rapidamente, enquanto lida com a dor e o vazio. Dentro da residência onde vivia com o filho, repetidas vezes teve a sensação de que o menino ingressaria pelo portão, como costumava fazer. Samuel, ou o Muka, como era chamado, passava a maior parte do dia em casa. Quando saía, era acompanhado dos pais, para ir ao mercado ou à igreja. Assim como outros moradores, o menino também acabava impactado pelos casos de violência promovidos pela disputa do tráfico.
A primeira vez que Samuel presenciou um tiroteio tinha entre cinco e seis anos e estava brincando dentro do carro dos pais, em frente à casa da família. Um dos criminosos em fuga chegou a apontar uma arma na direção do veículo ao perceber que havia alguém dentro.
— Mãe, achei que ia morrer — confidenciou o garoto na época, pálido e aterrorizado com a situação.
— Ele não saía para a rua. Tinha muito medo de morar aqui — conta a mãe.
Há cerca de três meses, a família passou por outro momento de tensão. Renata era proprietária de uma loja de roupas nas proximidades e estava trabalhando, quando ouviu o som de tiros. Por mensagem, orientou o filho, que estava em casa, a não sair. Como ele não respondeu, decidiu ir até a moradia conferir como ele estava. Ao chegar em casa, deparou com o filho escondido sob uma montanha de almofadas, numa tentativa inocente de se proteger.
— Ele estava deitado com uma barraquinha de almofadas por cima, encolhidinho. E o que mais me dói é saber que quando aconteceu isso ele estava sozinho. Ele deve ter sentido muito medo e eu não estava lá para ajudar. É uma guerra do tráfico, que tu não levantas bandeira para ninguém, que não tem envolvimento, não sabe que comanda. Não tem participação nenhuma e daqui a pouco respinga na gente. Imagina, duas horas da tarde, meu filho tinha acabado de almoçar. Não tem explicação. E a brutalidade. Meu Deus do céu — desabafa Renata.
Após a perda do filho, Renata decidiu fechar a loja e vender o estabelecimento. Não quer mais viver no mesmo local. Está em busca de emprego como vendedora para poder deixar o bairro. A barbearia onde aconteceu o ataque fica a poucas quadras da casa da família. Na noite anterior ao crime, Renata passou em frente ao estabelecimento e viu que ainda estava aberto. Lembrou que Samuel tinha pedido para cortar os cabelos porque tinha um encontro de escoteiros no fim de semana seguinte. Quando chegou em casa, sugeriu que o menino fosse com ela.
— Não, mãe, de noite é perigoso andar aqui no bairro. Vamos deixar para outro dia — respondeu o menino.
No dia seguinte, foi a mãe quem agendou o horário para que ele pudesse ir na barbearia. Samuel almoçou em casa com o pai, o pastor Anderson Cardona Lucas. Logo depois, ele levou o filho até o local e pediu que o barbeiro avisasse quando o corte estivesse pronto para que ele pudesse buscar o garoto. Antes de sair, ainda tirou uma foto de Samuel sentado na cadeira e mandou para a esposa, dizendo que havia deixado o “pequenininho” na barbearia. Minutos depois, o pai chegava na loja da família, quando viu moradores correndo assustados pela rua.
Não sei como alguém consegue colocar a cabeça no travesseiro sabendo que atirou tantas vezes numa criança. Não sei como essa pessoa consegue dormir. Meu filho não merecia isso.
RENATA SILVEIRA LUCAS
Mãe de Eliezer Samuel
— Começaram a gritar, que tinha dado um atentado na barbearia e tinham matado todo mundo. Meu esposo pegou a moto e saiu correndo. Quando chegou lá, ele já estava caído no chão. Não sei como alguém consegue colocar a cabeça no travesseiro sabendo que atirou tantas vezes numa criança. Não sei como essa pessoa consegue dormir. Meu filho não merecia isso — desespera-se Renata.
O pai chegou a socorrer o filho e leva-lo até o Hospital Divina Providência, de onde o garoto foi transferido para o Hospital de Pronto Socorro, mas ele não resistiu.
Homenagem na escola
Evangélica, a mãe busca consolo na fé para a perda precoce e brutal, que ainda tenta compreender. O menino costumava auxiliar os pais no culto e pretendia se batizar em dezembro. Na semana passada, Renata esteve na Escola Vera Cruz, onde Samuel estudava no sétimo ano do Ensino Fundamental. Recebeu dos estudantes uma homenagem, que foi também a forma encontrada pela instituição para que os colegas do garoto pudessem expressar a dor do luto. Dentro de uma caixa decorada com o nome “Eliezer” e dois anjos desenhados, estão dezenas de cartinhas escritas pelos alunos relembrando momentos vividos com o colega.
Renata guarda na mesma caixa uma carta que Samuel escreveu para o pai. Nela, o menino agradece pelo tempo que viveram juntos, pelas brincadeiras, as viagens, os presentes, o cão de estimação e por sua vida. Sem poder imaginar o futuro breve, o garoto ainda brinca que quando crescer espera não ser tão alto quanto o pai, a quem chama de melhor amigo.
— Ele era grato por tudo. É inadmissível. Quando se perde o marido, todo mundo diz: “Lá vem a viúva”. Quando um filho perde a mãe, ficou órfão. Mas ninguém achou nome para dar a uma mãe que perde um filho. Não tem explicação. É muito difícil. Não pude nem dar o último abraço nele — desabafa a mãe, que recorda de um menino calmo e amoroso, que adorava colher flores na rua para lhe entregar.
Sonhos
Samuel, ou Muka, como costumava ser chamado pela mãe, era um garoto tímido, mas que tinha um sorriso contagiante. Cheio de sonhos, dizia que seria jogador de futebol e de vôlei — do último esporte se vangloriava de ter aprendido as melhores jogadas com o pai. Além dele, o casal tem duas filhas, de 18 e 20 anos, mas somente o menino ainda residia com eles. Samuel nasceu e cresceu no bairro da Zona Sul, onde, além da escola, frequentava aos sábados o projeto Cristo Vive, voltado para crianças.
Ninguém achou nome para dar a uma mãe que perde um filho. Não tem explicação. É muito difícil. Não pude nem dar o último abraço nele
RENATA SILVEIRA LUCAS
Mãe de Eliezer Samuel
A mãe, que tinha comprado uma camiseta de futebol de Dia das Crianças para presentear o garoto, acabou se desfazendo de parte dos pertences de Samuel. Com eles, presenteou os amigos do menino que queriam alguma lembrança. Inspira-se nos atos do próprio filho, que não hesitava em emprestar as próprias chuteiras para que os amigos pudessem jogar melhor.
É também com esse intuito que Renata planeja uma ação em parceira com o Cristo Vive. A intenção é reunir verba para adotar todas as cartinhas da iniciativa Natal Solidário, da qual o menino costumava participar. Quem quiser ajudar, pode chamar Renata pelo WhatsApp (51) 99517 2912
— O sorriso do meu não vou ver mais. Mas sei que ele estaria feliz comigo, de eu poder fazer isso por outra criança. Ele sempre foi assim. O orgulho que eu tenho de ter o filho que eu tive, sei que as mães dessas pessoas que tiraram a vida do meu filho nunca vão ter — conclui Renata.
Polícia tem suspeitos, mas ninguém foi preso
O caso é investigado pela 1ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Capital. Segundo a delegada Isadora Galian, ainda há pessoas a serem ouvidas e são aguardados laudos periciais. Conforme a policial, a investigação identificou suspeitos de envolvimento no tiroteio, mas até agora ninguém foi preso. A investigação ainda apura quantos criminosos participaram do ataque.
O crime teria sido motivado por uma disputa entre facções criminosas, por território de domínio do tráfico. Um homem de 20 anos, apontado como alvo dos atiradores, que chegou a ser baleado sem gravidade, já foi ouvido duas vezes durante a apuração, mas a delegada não quis detalhar o teor do depoimento dele. Outro homem que aguardava para ser atendido na barbearia também foi alvejado pelos bandidos e chegou a ficar hospitalizado.
Quem tiver informações que possam ajudar na elucidação do caso, pode entrar em contato com a polícia pelo telefone (51) 98585-6111.