Na manhã da última terça-feira (27), quando a aula de educação física se aproximava do fim, Eliezer Samuel Lucas, 12 anos, fez um pedido ao professor. O garoto, que estudava no 7º ano da Escola Vera Cruz, no bairro Glória, em Porto Alegre, queria jogar vôlei. O educador atendeu ao pedido e dividiu a quadra com o aluno. Essa cena, gravada com celular, agora faz parte das memórias guardadas do estudante. Horas depois, enquanto cortava os cabelos próximo de casa, o adolescente se tornou vítima da guerra do tráfico. Foi executado a tiros, assim como o barbeiro Edgar Rodrigues Lisboa, 26 anos, que lhe atendia. Os dois não eram os alvos do ataque, segundo a polícia.
Na Escola Vera Cruz, que atende cerca de 500 alunos na Zona Sul, a turma 71 só retomará as aulas na próxima segunda-feira (3). Até lá, os professores elaboram a forma como receberão os estudantes e abordarão a perda do adolescente. Era ali que Samuel — ou Samuka, como era chamado — estudava desde o jardim de infância. Conhecido com um aluno dedicado e exemplar, sempre com excelentes notas, era tímido, mas ao mesmo tempo cativava os professores com um sorriso largo. A perda precoce e trágica atingiu toda a comunidade escolar.
— Era muito amigo de todo mundo, agregador, colaborativo. Alguns alunos pediram para fazer um memorial, para colocar homenagens. Estamos pensando com os professores em fazer um momento de fala, onde os alunos consigam expressar o que estão sentindo em relação ao colega e esse medo da violência, que é uma realidade deles hoje — diz Lisandra Alves, supervisora da escola.
Na quarta-feira (28), dia em que foi realizado o velório e sepultamento do adolescente, a escola permaneceu fechada. Nesta quinta (29), as atividades foram retomadas, mas os colegas de turma de Samuel só retornarão na próxima semana. Assim como muitos estudantes, o garoto morava nas proximidades.
— Para muitos ali é uma primeira perda. É uma perda significativa. Tem colegas que vieram desde o início. E, além de serem amigos da escola, eram vizinhos. Os alunos estão muito sensibilizados. E não só pela perda do amigo, mas a maioria mora no mesmo bairro e tem toda essa questão do medo. De uma realidade de viver na periferia, com esse medo constante do tráfico. Desse questionamento sobre a condição na qual eles vivem. Não têm culpa, mas estão pagando um preço muito alto. Eles já manifestaram isso antes. Têm essa consciência — afirma Lisandra.
Lisandra recorda que, pela timidez, Samuel costumava usar bastante moletom com capuz e demorou muito tempo a deixar a máscara de proteção contra a covid-19 para trás. Na última segunda-feira, uma das professoras viu o aluno sem graça e comentou sobre como o sorriso dele era cativante. No mesmo dia, o professor de educação física passou algum tempo jogando vôlei com Samuel ao final da aula.
— Agora a gente vê aquele vídeo dos dois jogando vôlei juntos e sabe que ele foi para casa, depois foi cortar o cabelo e acontece isso. É uma coisa que toma a gente, uma sensação de que arrancaram algo de todos nós. A professora que alfabetizou ele está inconsolável. Isso nos gera uma revolta. A sensação de que temos que fazer alguma coisa para que não aconteça mais. Todos nós perdemos um pouco — afirma a supervisora.
Como um rito de despedida, nos próximos dias a escola deve criar uma espécie de memorial para que os outros estudantes depositem flores e mensagens de despedida, junto à foto de um Samuel sorridente.
“Alegre, carinhoso” diz a mãe
Filho de pais evangélicos, Samuel era conhecido na comunidade onde eles moravam. Ali, também, o garoto participava de um projeto comunitário, chamado Cristo Rei. A mãe, Renata Silveira Lucas, recorda do filho como um “presente de Deus”. Samuel gostava de se vestir igual ao pai, Anderson Cardona Lucas, de quem contava com orgulho que era filho.
— Menino alegre, carinhoso, evangélico, por onde passou deixou alegria. Foi o último presente que Deus me deu, depois das minhas meninas preciosas. Louvo a Deus por ter escolhido a mim e meu esposo para gerar, educar, cuidar e ensinar o caminho — relata a mãe.
Mesmo bastante tímido, não deixava de frequentar a igreja e auxiliar nos cultos.
— Mesmo em meio à guerra do tráfico, sempre me dizia: "Me deixa mãe, estou indo para a casa do pai. Ele me aguarda". Dói, mas é a dor da presença física, do abraço, do beijo, da risada, aquele barulho no portão sabendo que está chegando. Mas a minha alma se alegra em saber que ele está em paz, e aonde não existe mais tristeza, choro nem dor — desabafa Renata.
Barbeiro trocou de profissão na pandemia
Órfão de pai desde os 16 anos, Edgar Rodrigues Lisboa, 26 anos, repetia que queria ser um paizão para o filho. O menino completará um ano na próxima semana, mas não terá a presença do pai. O barbeiro foi assassinado a tiros, enquanto trabalhava na última terça-feira. Filho mais novo da auxiliar contábil Cleusa Rodrigues Lisboa, 56 anos, Edgar havia mudado de profissão durante a pandemia, quando ficou desempregado.
— Um ótimo menino, ótimo filho, ótimo irmão. Um filho exemplar, companheiro, parceiro, um irmão, um tio, muito querido. Querido por todos — descreve a mãe.
Ele era um grande pai. Tinha planos para o filho. Sempre dizia que queria ser um paizão como o pai dele foi para ele.
CLEUSA LISBOA
Mãe de Edgar
Edgar morava com ela nas proximidades da barbearia da qual era sócio. Havia três meses que ele trabalhava ali, mas a mudança de profissão aconteceu havia cerca de dois anos. Em 2020, ficou desempregado e encontrou no ramo de barbearia um novo rumo. Na terça-feira, durante o intervalo de almoço, Edgar foi ver o filho e trocou mensagens com a mãe.
Quando Cleusa ficou sabendo do tiroteio na região, escreveu para o caçula: “Meu filho, está tudo bem?”. Mas não obteve nenhuma resposta. Ao ligar para o telefone do filho, outra pessoa atendeu e disse que aquele era o aparelho de uma das vítimas do tiroteio.
— Foi cruel. Liguei para minha sobrinha e ela já estava no hospital. Ele era um grande pai. Tinha planos para o filho. Sempre dizia que queria ser um paizão como o pai dele foi para ele. Mas infelizmente aconteceu isso — conta a mãe.
O corpo de Edgar foi sepultado na manhã desta quinta-feira (29), em Porto Alegre.
Investigação
Segundo a polícia, os criminosos estavam dentro de um Onix e passaram pela rua atirando. Na ação, outros dois homens ficaram feridos. Um deles, conforme a investigação, seria o alvo que os quatro atiradores queriam atingir. Foram disparados pelo menos 30 tiros contra o estabelecimento comercial, na esquina da Estrada dos Barcellos com a Rua Dona Mosa, no bairro Cascata.
Hospitalizado, o homem identificado como alvo dos atiradores usava uma tornozeleira eletrônica, mas havia rompido o equipamento. Segundo a polícia, ele é suspeito de ter participado do assassinato de um homem, envolvendo briga entre facções. O alvo dos atiradores seria membro de um grupo da Vila Cruzeiro, na zona sul de Porto Alegre, e os autores dos disparos seriam do Vale do Sinos. Essas duas facções estão no centro das disputas entre grupos criminosos na Capital.