Criado há 22 anos, o Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas do Estado (Protege) tem sido usado como estratégia de combate ao crime organizado, em especial ao narcotráfico. Conforme dados obtidos por GZH por meio de pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI), 737 pessoas passaram pelo programa nos últimos 20 anos. Atualmente, 60 estão sob proteção do Estado.
— Quase que a integralidade das delações e testemunhas que são acolhidas (no Protege) são em razão do temor de serem mortas por organizações criminosas, que patrocinam esses homicídios — analisa Vanessa Pitrez, delegada e diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
As despesas do programa são custeadas por convênio entre os governos federal e estadual. Em agosto de 2020, foi aprovada a aplicação de R$ 3,1 milhões no programa no período de 36 meses — R$ 2,5 milhões disponibilizados pelo governo federal e R$ 622,781 mil pelo Estado.
O perfil das pessoas protegidas revela como o crime organizado afeta não só as testemunhas, mas núcleos familiares e as comunidades em que estão inseridas: mais da metade das pessoas é dependente ou tem convivência habitual com a vítima (beneficiários).
— A gente traz para o programa o núcleo completo: marido, esposa, filhos. Lidamos com muita criança, e temos de inseri-las no ambiente escolar — explica o coordenador do programa, que não é identificado por motivos de segurança.
São 30 crianças e adolescentes nesta situação. Entre as testemunhas, vítimas e réus colaboradores (protegidos), 28 deles são adultos e têm entre 25 e 45 anos. Outros dois são idosos. No cenário de gênero, os números são próximos (veja o gráfico abaixo).
A maioria das testemunhas emergiu da criminalidade e tem ligação com o tráfico de drogas. Esse é um dos motivos que explicam a peregrinação dessas pessoas. Como mostrou GZH em 2018, elas são levadas para abrigos em cidades em que nunca pisaram antes, dentro ou fora do Estado.
— É um rompimento de laços. No momento em que ela aceita entrar no programa, tem vários regramentos, entre eles, a falta de contato com conhecidos. Não pode usar rede social, não tem acesso a drogas. Se usar drogas, o caso vai para o Condel (Conselho Deliberativo) e ela pode ser excluída do programa. Tem de ser criado um ambiente para a testemunha — conta o coordenador.
Não podemos dar a chave para a testemunha e dizer "tchau". Nosso grupo é interdisciplinar. A gente prepara esse momento. É uma saída tranquila, digamos assim.
COORDENADOR DO PROTEGE
A testemunha não pode retornar à cidade onde vivia anteriormente sem o acompanhamento de agentes do programa. Hoje, são 21 servidores entre segurança, equipe técnica e administrativa na proteção das testemunhas.
— A gente manda (o caso) para a Justiça quando está perto do final do processo e constrói a saída dela de forma segura. Temos preocupação e zelo muito grande. Não podemos dar a chave para a testemunha e dizer "tchau". Nosso grupo é interdisciplinar. A gente prepara esse momento. É uma saída tranquila, digamos assim.
— É construído um grau de confiança. A gente orienta um local para ela morar, de preferência onde não tenha atuação da facção em que ligada — explica o coordenador.
Há 29 situações em que houve abandono do programa desde que o Protege foi criado. Em fevereiro de 2020, Douglas Romano dos Santos, ex-gerente do tráfico de drogas de uma facção no bairro Mario Quintana, em Porto Alegre, foi morto a tiros em Santa Catarina. O desfecho veio um mês depois de deixar o Protege. Três anos antes, ele havia entrado em uma delegacia e narrado o que veio a ser a maior delação da história contra o crime organizado.
Romano revelou detalhes sobre o funcionamento de uma facção e sobre homicídios, sequestros e esquartejamentos. Não aceitava a execução de uma jovem, sua protegida, condenada por ter curtido um post dos rivais no crime. Também estava convicto da inocência de um comparsa e amigo que deveria ser morto como responsável pelo sumiço de uma arma.
— Pensei: "Daqui a pouco vai ser eu. Vou fazer uma coisa que ele (um dos líderes da facção) não goste e vai mandar me passar". Cheguei, troquei uma ideia, disse que não queria mais. Ele me pediu pra ficar uma semana só, pra arranjar outra pessoa. Falei para um chefe também. Ele começou a dizer para os guris que eu sabia demais. Tinha mandado me matar. Nem sabia que tinha esse negócio de proteção (a testemunhas). Eu tinha prova. Não cheguei só na minha palavra. Levei (à polícia) tudo o que tinha — disse Romano em 2019, quando foi ouvido pela reportagem de GZH.
O depoimento do ex-gerente do tráfico gerou pelo menos 60 processos de homicídio e ajudou a isolar três líderes em penitenciárias federais. Possibilitou à polícia a descoberta de um depósito usado pela facção em Canoas, próximo à BR-386, onde estavam armazenados 142 quilos de maconha em uma fábrica de fachada.
Nos últimos dois anos, segundo o Departamento de Homicídios, na Capital, outros dois casos foram incluídos no Protege e tornaram-se fundamentais em investigações envolvendo o tráfico de drogas.
Mais de 260 casos
Criado pela Casa Civil por meio do decreto 40027, o programa ganhou status legal em 27 de março de 2000. Auxiliou em 267 casos, sendo vital na CPI do Crime Organizado, que investigou três campos que envolvem esse tipo de crime: roubo de cargas, lavagem de dinheiro e impunidade no Estado, incluindo esquemas envolvendo policiais.
Para Marcos Rolim, ex-deputado estadual e federal, presidente do Instituto Cidade Segura, autor da Lei Estadual 11.314, que originou o Protege, o fato de o programa ser completamente vinculado ao poder público pode dificultar relatos de testemunhas sobre crimes envolvendo as próprias instituições públicas, como ocorreu na CPI do Crime Organizado.
A segurança é realizada por policiais, e é a estrutura pública que prestará, também, serviços como assistência social.
— Quando surgiu a lei, a ideia básica era ter algum instrumento para fornecer proteção a testemunhas. Pernambuco foi o pioneiro nesse sentido, teve influência. Conheci a experiência deles, que aqui não tínhamos. Mas a lei aprovada não estabeleceu como se organizaria a estrutura do Protege, porque isso era uma questão administrativa — explica Rolim.
— Como eu tinha o modelo de Pernambuco, sempre defendi que aqui fosse organizado pelas ONGs, associações, que pudessem se conveniar. E o governo na época optou pela proteção policial. Qual é o grande problema? Seria conveniente que não fosse dependente da polícia. Claro que a polícia pode ajudar, mas o problema é que foi 100% centrado nas polícias e isso limitou — completa.
O coordenador do Protege, por sua vez, diz que "o modelo de trabalho de segurança desde 2000 tem conseguido atingir seu papel e garantir a vida das pessoas que entram no programa".
Medo
Delatar casos é um caminho sem volta para o "código de ética" do mundo do crime. Por causa disso, o temor é constante entre as testemunhas. Há uma saída para diminuir a impunidade, mas exige confiança nas instituições públicas, avaliam especialistas.
— A gente vive verdadeiro caos em relação à prova testemunhal. Já é difícil, e quando chega na fase judicial, cara a cara, a testemunha volta atrás por falta de um sistema que a proteja. Hoje temos o Protege como a única gota de proteção que a testemunha pode ter — avalia a delegada Vanessa Pitrez.
Como apuramos esta matéria?
Os dados sobre o Protege foram solicitados por GZH via Lei de Acesso à Informação (LAI) à Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS) e referem-se a março de 2000 a junho deste ano. A resposta foi recebida em 7 de julho, após prorrogação do prazo por 10 dias, conforme prevê a Lei nº 12.527/2011. Demais informações sobre o funcionamento do programa foram obtidas diretamente com a coordenação do programa por e-mail e telefone.
Quais os cuidados que tomamos com os dados?
A SJSPS informou a inexistência de registro de identificação da qualidade dos protegidos (se réu colaborador, se vítima, se testemunha) entre os anos 2000 a 2013, sendo possível discriminar tais dados a partir de 2014. Por isso, foi detalhada a qualidade de testemunhas apenas como "protegido" ou "beneficiário" na composição do programa. Também não foram divulgadas informações que pudessem expor as testemunhas.