O porto-alegrense Douglas Gonçalves Romano dos Santos sabia que estava sentenciado à morte e conformava-se com o fato de que já havia vivido muito. Em 2017, voltou-se contra a facção do qual havia feito parte desde a adolescência na zona leste da Capital e se tornou autor da maior delação contra o crime organizado no Rio Grande do Sul. À Polícia Civil e ao Ministério Público detalhou crimes vinculados ao tráfico de drogas, como homicídios e lavagem de dinheiro.
A partir desta confissão, foram gerados pelo menos 60 processos contra o grupo criminoso e suas lideranças. O ex-gerente do tráfico permaneceu sob resguardo de programa de proteção a testemunhas, até abrir mão dele em janeiro deste ano. Longe da guarnição do Estado, aos 23 anos, foi executado a tiros na madrugada de domingo em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
Na confissão, há três anos, o delator apontou mandantes e executores de homicídios, relatou a existência de um cemitério clandestino, indicou pontos de armazenamento de drogas e bens que pertenciam à facção. Detalhou a forma de atuação do grupo, inclusive o destino do dinheiro arrecadado com o tráfico. Isso gerou uma série de operações de combate ao crime e mais de 150 prisões preventivas.
— Na real, eu já tô fazendo hora extra na Terra — descreveu o delator em março do ano passado, quando foi ouvido pela reportagem de GaúchaZH.
Na época, Douglas vivia sob proteção do programa, longe do Estado de origem. Mudava-se constantemente, chegou a residir por um período na Bahia. Quando retornava ao RS, desembarcava no Aeroporto Salgado Filho, protegido por escolta. Saía do avião antes dos outros passageiros e era mantido em sala separada. Deslocava-se de helicóptero ou carros blindados. Quando precisava pernoitar, era mantido em hotel sob proteção de seguranças. Mesmo longe do Estado, dormia com o colete à prova de balas ao lado da cama.
— Uma hora vão me pegar, isso é certo — confidenciou à reportagem.
A conclusão fazia sentido: desde que decidiu delatar o grupo, com berço no bairro Bom Jesus, estava jurado de morte. Isso porque gerou processos por série de crimes contra as principais lideranças do grupo. Parte das investigações, envolvendo homicídios e lavagem de dinheiro, recaiu sobre José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca, considerado um dos principais líderes da facção. Por motivos de segurança, passou a ser ouvido judicialmente por videoconferência. Mas Douglas não se adaptava bem às regras rígidas do programa. Em janeiro deste ano, voluntariamente decidiu abrir mão dele.
— Ele não cumpria regras. Continuava fazendo contato com o mundo do crime. Houve pressão sobre ele, para se adaptar. Ele optou por se desligar. Enquanto esteve dentro do programa, esteve a salvo — explica uma autoridade que acompanhava a movimentação do delator.
Após sair do programa, permaneceu em Balneário Camboriú, onde seguia mudando de endereço com frequência. Menos de um mês depois, na madrugada de 2 de fevereiro, foi baleado na saída de um clube, onde era realizada uma festa. Outros três, também com antecedentes criminais, foram alvejados. Os autores dos disparos estavam em um Kia Soul roubado em Porto Alegre. Douglas foi baleado, mas sobreviveu. Segundo a polícia, o ataque partiu dos inimigos dele no RS.
O delator permaneceu hospitalizado e, quando deixou a casa de saúde, passou a residir no bairro Pioneiros. Na noite de domingo, chegava em casa em uma corrida realizada por meio de um aplicativo. Desembarcou do carro mancando, por conta da perna esquerda engessada. Foi executado com uma sequência de disparos que partiu de um veículo onde estavam quatro homens. Atingido na cabeça, como previa, o delator tombou morto no meio da rua.
— É uma viagem sem volta, para a grande maioria que ingressa nesse mundo do crime. Ele próprio sabia disso — conclui um delegado que acompanhou o início da delação, em 2017.
Os policiais investigam a suspeita de que ele tenha se envolvido com um grupo criminoso catarinense. Sobre a execução, a principal hipótese é que tenha sido localizado por seus rivais. Algo que ainda está sendo apurado pelos investigadores catarinenses.
— Embora tenha ocorrido lá, o resultado é relevante para o nosso trabalho. Tudo vai repercutir nos processo em que ele foi delator. O esclarecimento é de extrema importância — afirma o delegado Eibert Moreira, diretor de Investigações do Departamento de Homicídios.
Depoimentos
Antes de se tornar delator, Douglas foi gerente do tráfico no bairro Mario Quintana, na zona leste de Porto Alegre, onde cresceu. Conhecido como Magrão, circulava pelo bairro com uma camiseta do Barcelona. No período em que fez parte do grupo criminoso, ostentava armas, como pistolas e fuzis.
Tanto no meio policial, como no judiciário, o delator era conhecido pela veracidade das declarações. Confessou à polícia ter sido responsável por crimes bárbaros, resultado da guerra do tráfico. Relatava com detalhes execuções brutais, incluindo esquartejamentos, das quais havia feito parte. Há mortes de pessoas que nem se sabia, e após a delação se acharam os corpos. Foi determinante, por exemplo, para que se encontrasse um cemitério clandestino na Capital, onde o Ministério Público estima que estejam enterrados mais de 100 corpos.
— Nunca peguei uma mentira dele — confidenciou um membro do Judiciário em março do ano passado à reportagem.
Em relação aos processos no quais foi ouvido como testemunha, os desdobramentos dependerão do andamento de cada caso. Boa parte dos depoimentos, segundo o Ministério Público, foram gravados. Os vídeos podem inclusive ser utilizados em julgamentos, já que são provas constituídas no processo.
Redes sociais
Após deixar o programa de proteção a testemunhas, Douglas marcou sua localização em uma publicação no Facebook. Nela indicava que estava em Balneário Camboriú, no litoral de Santa Catarina. Assim como foi acompanhada pela polícia, a confirmação de que o autor da delação vivia no Estado vizinho também foi descoberta por seus rivais.
Teria sido o motivador da tentativa de homicídio que ele sofreu em 2 de fevereiro. A polícia descobriu, segundo o delegado o delegado Eibert Moreira, diretor de Investigações do Departamento de Homicídios, que o veículo usado no ataque foi roubado no bairro Itu Sabará, em Porto Alegre em 23 de janeiro. No Kia Soul, criminosos gaúchos seguiram até Santa Catarina, onde rastrearam o paradeiro do delator. Ele estava em um clube, onde era realizada uma festa.
— Esses criminosos migraram daqui para lá atrás dele. Provocaram uma confusão nessa casa noturna, uma briga generalizada, para que ele saísse para a rua. Ele saiu e foi alvejado, mas não veio a óbito. Ele era uma pessoa que corria risco de vida. Por isso, acompanhávamos a movimentação dele. Da mesma forma, os criminosos também sabiam onde ele estava — explica o policial.