O número de armas nas mãos de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) mais do que dobrou nos últimos quatro anos no Rio Grande do Sul. Saltou de 65.578 em dezembro de 2018 para 148.526 até julho de 2022. No país, a quantidade de armamentos registrados ultrapassou a marca de um milhão: foi de 350.683 em dezembro de 2018 para 1.006.725 armas em acervo até o mês de julho, um aumento de 187%. Os dados foram solicitados ao Exército pelos institutos Igarapé e Sou da Paz e obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.
Conforme o levantamento, que divide o país em regiões militares (RM), o Rio Grande do Sul aparece em terceiro no ranking em número de armas de CACs no país até julho. Para fins de administração interna, o Exército divide o país em regiões militares, e não por Estados. São 12 RMs. A maioria delas é composta por mais de um Estado — como a 1ª RM, formada por Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos. Os casos de São Paulo (2ª RM) e do RS (3ª RM) são exceções, em que as regiões militares são formadas por um único Estado.
No topo do ranking aparece São Paulo, que soma 279.507 equipamentos até julho de 2022, seguido pela região formada por Santa Catarina e Paraná, com 171.907. Depois do RS, com 148.526, está a chamada 11ª RM (formada por DF, GO, TO e triângulo mineiro), com 122.648, e a 4ª RM (MG, exceto triângulo), com 57.945.
Em julho, levantamento divulgado pelo jornal Estadão mostrou ainda que o grupo de CACs cresceu significativamente na gestão do presidente Jair Bolsonaro. Em quatro anos, o número de pessoas com esse tipo de registro cresceu 474%: passou de 117.467, em 2018, para 673.818 este ano (até 1º de julho). Os cadastrados como CACs superam os 406 mil policiais militares da ativa que atuam em todo o país. O número também é maior do que o efetivo de 360 mil homens das Forças Armadas.
A pauta armamentista voltou com força aos holofotes em 2018, sendo uma das bandeiras da campanha presidencial de Bolsonaro. Nos últimos anos, a gestão do presidente fez alterações e flexibilizou o acesso ao armamento. Uma das mudanças foi a ampliação do número de armas adquiridas tanto pelo cidadão comum como por CACs.
Para os institutos responsáveis pelo levantamento, o número de armas em circulação preocupa. Conforme a gerente de projetos do Sou da Paz, Natália Pollachi, apesar de as armas terem, em princípio, uso específico, na prática podem acabar resultando em mais violência.
— Muitas vezes, a pessoa que tem a arma acredita que está menos vulnerável em um assalto, uma abordagem. Só que, no fator surpresa, ao sacar a arma na intenção de se defender, pode acabar levando um tiro, causando um tiroteio, atingindo terceiros ou até ter a arma roubada na ação. Além disso, existem os casos em que a pessoa que possui a arma acaba a utilizando em um momento de descontrole — opina Natália.
Neste caso, ela cita como exemplo a ação registrada na zona leste de São Paulo, em que um homem foi preso em flagrante após atirar e matar a ex-esposa e um filho do casal, de dois anos — um irmão da criança, de quatro anos, também estava no local mas não foi atingido pelos disparos. O homem preso, Ezequiel Lemos Ramos, 39 anos, tinha registro de CAC. A carabina usada no crime sumiu do local durante as mortes e não foi localizada pela polícia até esta quarta-feira (14). O caso foi registrado como feminicídio.
A gerente destaca que defende a construção de uma legislação "mais responsável", não necessariamente uma proibição total de acesso às armas.
Para o pesquisador em Segurança Pública e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), Fabricio Rebelo, no entanto, a ocorrência de casos do tipo é baixa, e o aumento de armas em circulação pode ser positivo, por permitir um "exercício eficaz da legítima defesa".
— Não há qualquer elemento que permita atribuir efeitos negativos a esse aumento. Ao contrário, enquanto o número de CACs aumentou expressivamente, os homicídios caíram em percentuais recordes. Na verdade, esse é um segmento sem qualquer impacto minimamente significativo na segurança pública, porque as armas têm uma finalidade específica. Se houver esse impacto, ele tende a ser positivo, porque dá a possibilidade, ainda que excepcional, de exercício eficaz da legítima defesa — afirma Rebelo.
Equipamentos de CAC foram usados em assalto a carro forte
Um dos casos em que armas adquiridas legalmente acabaram usadas em ações criminosas no Estado foi o de um roubo a um carro-forte na entrada de um supermercado em Guaíba, às margens da BR-290, no fim de dezembro de 2021. Na ação, que chamou atenção pela ousadia, os criminosos estavam armados de fuzis e disfarçados de policiais civis.
Durante a investigação, a Polícia Civil descobriu que o comprador do fuzil Imbel, usado na ação e encontrado na Ilha do Pavão durante as buscas, por exemplo, é um homem com certificado de atirador, colecionador e caçador, do município de Getúlio Vargas, que comprou o armamento legalmente.
Segundo a polícia, ele ganhou R$ 2 mil de criminosos pela compra do fuzil e de uma pistola. Depois, forneceu ainda outras duas armas curtas ao grupo, que o teria ameaçado de morte para obter o restante do armamento. O homem, que não teve a identidade divulgada, foi preso em fevereiro de 2022 e depois colocado em liberdade.
Atualmente, o Exército permite um limite de registro de 60 armas de fogo para atiradores (sendo 30 de calibre restrito); 30 para caçadores (sendo 15 de calibre restrito) e dispensa limites para colecionadores.
Para Natália, esse seria outro risco da flexibilização na aquisição de armas:
— Permitir 60 armas de fogo, sendo 30 delas fuzis, é uma quantidade muito descabida para a atividade de atirador esportivo, acaba por atrair pessoas mal intencionadas, que querem lucrar com essa revenda. Vemos casos do tipo surgirem diariamente. Antes, tinha uma regulamentação diferente, em que a pessoa ia comprando quantidades maiores de acordo com a profissionalização dela no tiro esportivo. É muito importante resgatar uma legislação que seja responsável, porque a que temos hoje é ineficiente.
A gerente cita ainda outro ponto que considera problemático: roubo e furto desses equipamentos.
— No Estado de São Paulo, por exemplo, temos uma média de oito armas roubadas ou furtadas por dia. Então, vemos que o mercado legal serve como fonte para o ilegal. É muito mais barato, para o criminoso, tentar roubar uma arma do que entrar em um esquema de tráfico para obter esse armamento — complementa Natália.
Para Rebelo, no entanto, casos em que CACs venderam ou cederam armas a criminosos são raros e não representam a realidade. Outro ponto é que, segundo o pesquisador, a burocracia envolvida no processo de aquisição do armamento não seria atrativa aos grupos criminosos:
— Estatisticamente, casos de desvio de acervos de CACs são insignificantes. Não há como atribuir a esse mercado qualquer fonte relevante de fornecimento de armas a criminosos, inclusive por conta de três fatores bem específicos: preço, burocracia e rastreabilidade. De modo geral, o custo total da aquisição de armas legais é muito maior do que as do mercado ilegal, exigindo um burocracia que chega a meses até que efetivamente ingressem na posse do CAC.
Fiscalização
A fiscalização dos armamentos, feita pelo Exército, seria outro impeditivo, conforme Rebelo:
— Por ser um segmento fiscalizado, as chances de identificar os desvios são muito altas. Se alguém compra uma arma nova, por exemplo, e não há os registros de sua participação em treinos e competições no clube a que é filiado, o que é fiscalizado pelo Exército, se chama atenção para essa circunstância, favorecendo muito que seja prontamente identificado qualquer desvio. Aliás, nesses casos que já foram registrados, a regra é exatamente essa.
Já para o Instituto Sou da Paz, essa fiscalização feita pelo Exército é insuficiente, especialmente com o crescimento do registro de armas no país.
— A fiscalização é muito insuficiente. No sistema que o Exército usa até hoje não é possível, por exemplo, extrair informações básicas, como o calibre dessas armas ou para que cidades elas vão. O dado mostra apenas qual a região militar (que agrupa alguns Estados em uma mesma região, por exemplo). É algo muito precário — argumenta Natália.