Era meio-dia do último sábado (21) quando Evilyn, seis anos, perguntou para a mãe porque uma foto do seu avô, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, estava aparecendo na TV. Até ali, Thais Freitas, 22 anos, tinha conseguido evitar o assunto com a filha. Surpreendida com a indagação da menina não conseguiu escapar de uma explicação. Contou que o avô havia sido agredido e morto dentro do Carrefour em Porto Alegre na noite da última quinta-feira (19):
— Eu disse que ele tinha ido encontrar a bisa Berenice (mãe de João que morreu em 2017). E que tinha gente que não gostava da nossa cor, algumas dessas pessoas também eram agressivas. Ela se assustou, mas não chorou, ela é mais forte do que eu. Ela que tem me consolado com beijos e abraços.
Além de lidar com a perda brutal do pai, o desafio de Thais é evitar de todas as formas que os vídeos que chocaram o país, mostrando a violência empregada por dois seguranças contra João Alberto, cheguem aos olhos da criança. Em uma hora de conversa com GZH durante o intervalo do almoço nesta quarta-feira (25), Thais atendeu duas ligações e respondeu diversas mensagens. Na segunda-feira (23), conversou ao vivo com Fátima Bernardes na TV Globo e tem sido procurada diariamente pela imprensa e por advogados interessados em oferecer assistência jurídica.
Thais tem recebido apoio mas também tem deparado com ataque ao pai nas redes sociais, onde circula uma suposta lista de antecedentes criminais — João tinha registros por violência doméstica e porte ilegal de arma em 2010. A filha decidiu parar de acessá-las para conter o impulso de responder pessoalmente às investidas contra o pai.
— Então se tenho ficha suja tenho que sair sem vida de dentro de um supermercado? Tenho que levar soco e chute? O mercado não é um tribunal. Não temos pena de morte no Brasil. As pessoas querem culpá-lo pela própria morte. Se alguém me seguir dentro no supermercado, vou ficar furiosa também. Isso acontece direto comigo em shoppings, principalmente se estou mal vestida. Não sabemos o que os seguranças falaram com meu pai para ele dar um soco em um deles. Ninguém sabe o que foi falado — desabafa.
Então se tenho ficha suja tenho que sair sem vida de dentro de um supermercado? Tenho que levar soco e chute? O mercado não é um tribunal. Não temos pena de morte no Brasil. As pessoas querem culpá-lo pela própria morte. Se alguém me seguir dentro no supermercado, vou ficar furiosa também. Isso acontece direto comigo em shoppings, principalmente se estou mal vestida.
THAIS FREITAS
Filha de João Alberto
Segundo Thais, racismo nunca foi tema de conversa entre pai e filha. A jovem conta que entre os 10 e 12 anos era chamada de macaca pelos colegas na escola municipal em que estudou. Guardava as ofensas para si.
— Eram sempre os mesmos e era toda hora. Muitas vezes, não queria ir para a escola por isso ou matava aula sozinha. Não contava para a mãe, nem para o meu pai. Assim como ele não contava para mim se sofria racismo. Espero que minha filha nunca passe por isso — relembra.
A jovem acompanha a investigação à distância e diz que não acreditar que o pai tivesse desafetos no supermercado — com três suspeitos do homicídio presos, a polícia tenta chegar a motivação das agressões que tiraram a vida de João Alberto.
— Se ele tivesse desentendimento anterior, não iria mais naquele mercado. E se ele estava certo ou errado, não precisavam bater assim, que imobilizassem e chamassem a polícia. Aquele momento não tem nada a ver com algo do passado do meu pai. Ele acabou sendo julgado ali. Não tem justificativa para o que aconteceu, é só olhar os vídeos — afirma.
"Agora penso que devia ter passado mais tempo com ele"
Auxiliar de limpeza em um condomínio no bairro Humaitá, Thaís é a filha mais velha de João Alberto, fruto do namoro do pai com uma colega do Ensino Médio. Ele tinha 18 anos quando a Thais nasceu e em todas a fotos que aparece ao lado da menina, ainda criança, está magro e sorridente. Na descrição de Thais, o pai era brincalhão, faceiro e namorador. Pai e filha nunca moraram juntos, mas eram próximos graças ao apego da primogênita com os avôs paternos.
— Meu avô me buscava de Fusca para ir ver meu pai. Eu tinha uma semana de vida e minha mãe me liberava para conviver com eles — conta.
A amizade entre os avós maternos e paternos ofereceu a Thais um esteio familiar forte. A jovem conta que sempre se relacionou bem com as companheiras do pai e com os três irmãos — João Alberto tinha mais três filhos, duas meninas, de 16 e nove anos, e um menino de 15. Na adolescência, o pai tinha ciúmes dos namorados da filha, fazia questão de conhecê-los e se aproximar dos garotos, mas não era do tipo de dar sermão. As regras da família eram estabelecidas pela avó Berenice, mãe de João Alberto, que morreu de câncer em 2017.
Assim como o pai, foi mãe ainda adolescente. Evilyn nasceu quando Thais tinha 16 anos. O puxão de orelha pela gravidez precoce veio dos avós, João Alberto não julgou a filha e se apegou à neta. Na última vez em que Thais e João Alberto se viram pessoalmente, no final de abril, ele entregou um urso de pelúcia para a menina:
— Agora eu penso que devia ter passado mais tempo com ele, devia ter convivido mais. Fazia meses que não conversávamos — admite a jovem.
Desde que João passou a morar com a atual companheira, a cuidadora de idosos Milena Borges Alves, em apartamentos conjugados na Vila do IAPI, a filha não teve mais o mesmo contato com o pai, que até então morava do lado da casa do avô João Batista Rodrigues, 65 anos, no Humaitá.
Senti uma tristeza tão grande mas ao mesmo tempo um alívio de ver que todas aquelas pessoas estavam ali mobilizadas pelo meu pai. Não quero que esse crime caia no esquecimento para que se repita ali adiante, nem quero que os envolvidos respondam em liberdade
THAIS FREITAS
Filha de João Alberto
Thais soube do assassinato do pai às 2h da madrugada de sexta-feira (20), quando foi acordada com a ligação de uma prima. Não conseguiu atender, mas pegou o telefone, abriu o WhatsApp e encontrou dezenas de mensagens com os vídeos da agressão sofrida pelo pai no estacionamento do Carrefour. Reconheceu o pai pela voz.
— Foi uma coisa chocante, que nunca imaginei passar — resume.
Mandou a filha para a casa da madrinha e, na sexta-feira (20), participou do primeiro protesto contra o racismo e em memória do pai.
— Senti uma tristeza tão grande mas ao mesmo tempo um alívio de ver que todas aquelas pessoas estavam ali mobilizadas pelo meu pai. Não quero que esse crime caia no esquecimento para que se repita ali adiante, nem quero que os envolvidos respondam em liberdade — afirma.
Depois que foi pega de surpresa pela filha, Thais não tem visto mais noticiário na TV, mas diz que o caso precisa de visibilidade. Está em um grupo de WhatsApp que organiza para próxima sexta-feira (27) um ato religioso em homenagem a João Alberto, marcado para as 18h na Igreja São Jorge, no bairro Partenon.
— Queremos fazer mobilizações pacíficas para marcar uma semana da morte. É bonito ver toda a mobilização, mas isso não traz meu pai de volta — resigna-se a filha.