A perícia realizada no corpo e nas roupas de Mariana Ferrer, em dezembro de 2018, em Santa Catarina, comprovou que ela teve ruptura de hímen e encontrou material genético compatível com o de André de Camargo Aranha em sua calcinha. Mas, na decisão que absolveu o empresário do crime de estupro de vulnerável, o Judiciário entendeu que a palavra da vítima não seria suficiente para condená-lo. A jovem afirma que acredita ter sido dopada durante uma festa e violentada sexualmente. O laudo toxicológico realizado na vítima não comprovou que ela tenha ingerido alguma substância desse tipo.
A sentença segue a mesma linha das alegações finais apresentadas em agosto pelo Ministério Público (MP). O promotor Tiago Carriço de Oliveira argumentou que não havia provas de que o empresário quis estuprar a vítima. O juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, concluiu, da mesma forma, que não havia como confirmar que o empresário sabia que a vítima poderia estar dopada. Isso, em seu entendimento, seria essencial para configurar o estupro de vulnerável.
“Sendo assim, a meu sentir, o relato da vítima não se reveste de suficiente segurança ou verossimilhança para autorizar a condenação do acusado”, afirmou o magistrado, embora ele mesmo tenha reconhecido que em casos de crimes sexuais a palavra da vítima deva ganhar especial relevância, já que muitas vezes há falta de provas.
No documento, ao qual GZH teve acesso, o juiz concluiu não ter sido possível apontar quem faltou com a verdade e que o relato de Mariana foi corroborado somente por sua mãe. A jovem conta que não recorda o que aconteceu na festa, mas chegou em casa transtornada, falando frases desconexas, com as roupas sujas de sangue e esperma. Mas no entendimento do juiz, o depoimento da mãe “pouco esclarece” em relação aos fatos. Confira o trecho:
"Apenas afirma que esta chegou em sua residência totalmente irreconhecível, que após lhe encaminhar para o banho, constatou que sua filha tinha sido violentada, porquanto as suas roupas estavam manchadas de sangue e com forte odor de esperma. No dia seguinte, após contato com sua filha e, tomada as medidas necessárias, confirmaram que se tratava de um possível caso de estupro”.
No processo, há ainda um motorista de aplicativo que conduziu Mariana até a casa dela. Ele confirmou em depoimento que ela não parecia estar bêbada, mas durante o trajeto chorava muito, repetia frases e chamava pelo pai. Confira parte do depoimento:
“A passageira estava, aparentemente, alterada por efeito de alguma substância, pois normal ela não estava. Não sabe dizer qual a substância, mas algo que tira a pessoa de sua normalidade. Bebida não era, porque não havia cheiro de álcool. Ela começou a se descontrolar, dizer frases repetidas. A impressão é que ela estava alterada por alguma substância, dizia frases repetidas”.
Com contraponto a esses relatos, o magistrado descreveu que outras testemunhas — também ouvidas no processo — afirmaram que ela estava consciente durante a festa, embora um "pouco alegre", mas “nada que demonstrasse estado de inconsciência ou incapacidade, nem mesmo foram alertados pela ofendida de que havia sido violentada”. O juiz ressaltou o fato de que a jovem não mencionou o estupro a nenhuma pessoa, embora a própria Mariana tenha afirmado que só se deu conta da violência horas depois, ao voltar a seu estado normal.
Embora tenha ficado comprovado que houve relação entre Mariana e o empresário, no entendimento do Judiciário, para configurar estupro de vulnerável seria necessário que a vítima não tivesse condições de oferecer resistência, e que o autor deveria ter ciência da vulnerabilidade dela. Neste ponto, o juiz citou os exames de alcoolemia e toxicológico, que apresentaram resultado negativo. Ponderou que os peritos reconheceram que possam existir substâncias que não sejam detectadas. Confira o trecho:
“Não se desconhece que há provas da materialidade e da autoria, pois o laudo pericial confirmou a prática de conjunção carnal e ruptura himenal, também não se ignora que a ofendida havia ingerido álcool. Contudo, pela prova pericial e oral produzida considero que não ficou suficientemente comprovado que Mariana Borges Ferreira estivesse alcoolizada — ou sob efeito de substância ilícita —, a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência”.
Por fim, concluiu que, como as provas são conflitantes em si, não há como impor ao acusado a responsabilidade penal, e citou a frase "melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente". Ao jornal Correio Braziliense, o advogado Julio Cesar F. da Fonseca, de Uberaba, Minas Gerais, responsável pela defesa de Mari Ferrer, informou que já ingressou com recurso no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, e que o caso agora segue em segredo de justiça. Ele afirmou também que a jovem está enfrentando problemas psicológicos e que aconselhou que ela não se manifeste no momento. GZH tentou contato com o advogado, mas ainda aguarda retorno.
Imagens de câmeras
Na sentença há a descrição das imagens que foram obtidas ao longo da investigação. Uma delas mostra o empresário e a jovem juntos. Às 22h25min, os dois sobem as escadas em direção ao camarim, onde permanecem cerca de seis minutos. Às 22h31min26s a vítima sai sozinha, e 21 segundos depois ele sai.
Num primeiro depoimento, ele alegou que só ajudou a jovem a subir as escadas. Depois, confirmou que mantiveram contato sexual, mas negou o estupro. Às 22h40min, Mariana deixou o Café de La Music e foi até outro estabelecimento (a cerca de 800 metros). Ela entrou no clube às 22h49min e permaneceu lá até 23h12min. De lá, chamou um Uber e deixou o local sozinha.
Depoimentos
Mariana
A jovem afirmou que foi contratada para trabalhar no local como divulgadora, por ser influenciadora e modelo. Ela contou que só recorda dos fatos até as 19h30min, depois disso teve um lapso de memória. Disse que só lembra de estar descendo uma escada escura, que “parecia que estava voando”, e “só queria sair dali”. Ela disse que se sentia como um robô, não raciocinava e não entendia o que estava acontecendo. A jovem contou que só teve noção do estupro no momento em que relatou o caso à polícia. Contou que somente no dia seguinte passou a sentir que estava passando o efeito e voltou a raciocinar. Enfatizou que se tivesse noção do crime teria chamado a polícia e que “nenhuma mulher de 21 anos iria perder a virgindade por um desconhecido”, naquele lugar.
A mãe da jovem
A mãe relatou que Mariana não atendeu o telefone a partir das 19h, embora as duas costumassem conversar quando ela estava em evento, e que só entrou em contato mais tarde por telefone, chorando e pedindo ajuda. Disse que em um primeiro momento pensou que a filha havia bebido de forma que nunca tinha visto. Relatou que o rosto dela estava sujo, que ela chorava muito e pedia para chamar o pai. A mãe contou que colocou a filha no chuveiro, tirou a roupa, e viu que a roupa tinha sangue. Disse que ela tremia muito e no outro dia seguia estranha. A mãe disse que nunca tinha visto a filha daquela forma e que ela parecia dopada.
Aranha
O empresário relatou em um primeiro depoimento que só auxiliou Mariana a subir as escadas e que não teve qualquer contato com ela. Em um segundo, no Judiciário, voltou atrás e admitiu ter mantido contato sexual. Mas alegou que a relação aconteceu de forma consensual. Afirmou que não chegou a acontecer penetração. Sobre a primeira versão apresentada, afirmou que havia sido orientado por sua defesa a negar o contato com a jovem.
A audiência
Apesar de a sentença ter sido determinada em setembro, o caso ganhou repercussão nesta semana após o site The Intercept Brasil divulgar novos detalhes sobre o processo, como o fato do Ministério Público ter pedido a absolvição do réu por entender que ele não teve dolo (intenção). A reportagem levou a uma onda de manifestação contra o "estupro culposo", expressão usada pelo The Intercept para definir a tese apresentada pelo MP.
O vídeo de uma audiência na qual Mariana foi ouvida — ela prestou depoimento à justiça em dois momentos, em 20 de julho e 27 de julho — também foi divulgado. No vídeo obtido pela reportagem, o advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho insulta a jovem repetidas vezes e mostra fotografias dela, que classifica como “ginecológicas”. “Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, respondeu a jovem.
O Senado aprovou um voto de repúdio contra o advogado, o promotor Tiago Carriço de Oliveira e o juiz Rudson Marcos, que absolveu o réu. Na prática, funciona como forma de pressão para que os órgãos responsáveis pelo caso tomem providências. A procuradora da Mulher do Senado, senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), informou que buscará a anulação da sentença.
A iniciativa dos senadores ocorre paralelamente a outras medidas tomadas pelo Conselho Nacional de Justiça, que vai apurar a conduta do juiz, e do Conselho Nacional do Ministério Público, que ainda avalia uma representação contra o promotor de Justiça. O CNJ informou que vai requisitar a íntegra do vídeo da audiência para analisar o comportamento do juiz durante todo o julgamento.
Para o MP de Santa Catarina, não há "indicação nos autos acerca do dolo", uma vez que a vítima não aparentaria estar fora de seu estado normal, "não afigurando razoável presumir que soubesse ou deveria saber que a vítima não deseja a relação" — linha que o The Intercept Brasil chamou de "estupro culposo". O MP afirma que a absolvição não foi baseada no argumento de "estupro culposo", mas na "falta de provas de estupro de vulnerável".