A Justiça inocentou o empresário catarinense André de Camargo Aranha, 43 anos, por entender que ele cometeu estupro culposo — crime que não está previsto na legislação brasileira. Segundo a sentença, o homem não tinha como saber que a jovem Mariana Ferrer, 22, não estava em condições de consentir com a relação sexual, ocorrida em dezembro de 2018, em Florianópolis. Dessa forma, não havia “intenção” de estuprar.
GZH conversou com especialistas da área para compreender a decisão do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, cuja conduta será investigada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por omissão durante acusações contra Mariana. A sentença é de setembro, mas detalhes da absolvição, como a tese de estupro culposo, vieram à tona apenas nesta terça-feira (3), com reportagem do The Intercept Brasil.
Presidente da comissão da Mulher Advogada, da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB-RS), Claudia Sobreiro de Oliveira afirma que a decisão é “desesperadora” e se baseia em um entendimento machista.
— Estupro só ocorre de forma dolosa, quando a intenção é se ter prazer com aquele ato. Estupro culposo não existe na nossa legislação. Não se pode mais admitir a ideia de que a vítima é a culpada pela violência que sofre. Precisamos refletir sobre essa cultura, trabalhar e esclarecer isso para a população, porque muitas pessoas ainda veem dessa forma — avalia.
Claudia destaca também a forma como a jovem foi tratada pelo advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho. No vídeo da audiência, divulgado pelo The Intercept Brasil nesta terça-feira (3), Gastão dispara série de acusações contra Mariana, mostra fotos da jovem, sem qualquer relação com o fato apurado, para questionar a acusação. O advogado afirma ainda que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana.
— É desesperador. (Postura) Totalmente inadequada, contra nossa conduta. Um absurdo. E tem ainda o fato de que quem deveria defender ela, o promotor, foi omisso. O próprio juiz deixou que aquilo tudo acontecesse — analisa Claudia, que afirma ainda que a OAB de Santa Catarina está analisando o caso e "apurando responsabilidades".
Nesse sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, publicou uma mensagem em seu perfil no Twitter, nesta terça, pedindo que órgãos de correição investiguem a postura dos agentes envolvidos no julgamento. O magistrado classificou como "estarrecedoras" as imagens da audiência da influenciadora.
"O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram", publicou o ministro.
Cultura do estupro
Para a promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Ministério Público do Estado (MP-RS), Ivana Battaglin, a chamada cultura do estupro ajuda a explicar o caso. O termo é usado, em geral, para descrever um ambiente em que a violação sexual contra mulheres é normalizada, porque o corpo feminino é tido como produto, e que esse comportamento violento é esperado devido à natureza masculina.
— O sistema de justiça criminal como um todo reproduz o que a sociedade é, porque ele não é apartado da sociedade, é composto por ela. Então, é machista, racista, misógino. As pessoas reproduzem essa ideia de que a culpa é da mulher, de que os homens são assim mesmo, violentos, e que nós (mulheres) devíamos nos proteger, nos cuidar. Aquela linguagem que o advogado usou, mostrando fotos da jovem, é cultura do estupro. Mas, infelizmente, não é só ele que pensa assim — explica.
Conforme a promotora, pesquisas estimam que pelo menos 90% dos crimes sexuais não são denunciados às autoridades por causa de casos como esse:
Toda a violência a que as vítimas são submetidas volta a acontecer no atendimento que nosso sistema dá a elas.
IVANA BATTAGLIN
Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do MP-RS
— Qual mulher quer ser submetida a esse tipo de julgamento? É algo que embrulha o estômago, é revoltante. Toda a violência a que as vítimas são submetidas volta a acontecer no atendimento que nosso sistema dá a elas: desde o primeiro atendimento, na polícia, até as audiências. Claro que esse é um caso extremo, mas muitas vezes, as mulheres são violadas novamente no processo.
A promotora ressalta ainda que esse caso veio à tona porque os julgamentos estão sendo gravados, já que a audiência é virtual devido à pandemia. No entanto, na maioria dos casos, esse tipo de tratamento ocorre dentro dos tribunais e sem provas:
— Quantas vezes isso acontece e nem sabemos? Porque este caso teve repercussão, mas muitos não têm. Para quem a pessoa vai recorrer nesse caso? Se as maiores autoridades estão ali, junto dela, e compactuam com essa barbárie. O juiz estava ali, o promotor estava ali. E, mesmo assim, ela precisou se defender sozinha.
Nas imagens, a jovem pede respeito:
— Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso? — diz.
Ivana explica ainda que é dever do promotor proteger a vítima. Mariana foi representada na audiência pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira, que se omite quando a jovem é acusada pelo advogado do empresário. Ela ressalta que o representante do MP “tem independência para analisar o caso e pedir absolvição de acordo com o entendimento que tiver”.
— Ele (Thiago Carriço de Oliveira) se omite em relação à agressão que essa menina passou na audiência. Quem preside a audiência, é claro, é o juiz, mas é dever do promotor proteger a vítima, chamar a atenção para ela. A conduta foi uma lástima, ele tinha o dever de protegê-la. A vítima precisou se defender sozinha. É de uma violência ímpar — avalia.
Conduta do juiz será investigada
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) irá investigar a conduta do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Em nota, informou que um procedimento foi instaurado para apurar a postura de Marcos durante o julgamento.
O pedido de investigação contra o juiz foi apresentado pelo conselheiro do CNJ Henrique Ávila à corregedoria do órgão. Ávila quer que sejam averiguadas responsabilidades do magistrado na condução da audiência por meio da abertura de uma reclamação disciplinar. A proposta deve ser apreciada pelo plenário do Conselho.
"As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual", escreveu o conselheiro no pedido.
O caso
O estupro teria ocorrido no tradicional clube da capital catarinense Cafe de La Musique, em 15 de dezembro de 2018. A denúncia se tornou pública pela própria Mariana Ferrer, que pediu ajuda em suas redes sociais para conseguir justiça.
Ela divulgou os vídeos do circuito de segurança da boate, nos quais aparece se apoiando na parede para conseguir andar, e a foto do vestido que usava naquela noite ensaguentado — ela era virgem na época. Ela afirma ainda que teria sido dopada.
Em setembro, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a blogueira Mariana Ferrer.