Passados quase quatro meses das primeiras restrições impostas para tentar frear o avanço da pandemia do coronavírus, as forças de segurança explicam como o tráfico de drogas no Rio Grande do Sul foi impactado pelo cenário de distanciamento social e controle de circulação. A venda ilegal de entorpecentes é afetada por fronteiras fechadas e disparada das apreensões feitas pelas polícias. Outro ponto atacado pelas investigações é a distribuição por meio de telentrega.
O consumo de drogas durante a pandemia não mudou, na percepção do diretor de investigações do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc), delegado Carlos Wendt. O que tem se adaptado é a forma como a droga chega até o consumidor, com uso de motoboys para fazer a entrega ao usuário. Em 17 de junho, a Polícia Civil fez uma operação em cinco cidades gaúchas e em Florianópolis para combater uma facção que montou esquema de telentrega de drogas em Gravataí. A modalidade já existia, mas foi intensificada durante o distanciamento social, concentrada especialmente no usuário de classe média alta.
A investigação revelou que os traficantes negociavam cocaína e crack por meio de contato telefônico ou por WhatsApp. Depois, realizavam as entregas para várias cidades da Região Metropolitana. Apenas em Gravataí, segundo a Polícia Civil, haviam pelo menos 10 pontos de venda e de distribuição de entorpecentes. O grupo já estava expandindo a atuação para a capital de Santa Catarina. Em outra operação, em 15 de maio, o Denarc desarticulou esquema semelhante em Alvorada, que atendia bairros da zona norte de Porto Alegre, onde os consumidores se cadastravam em um grupo de WhatsApp para fazer os pedidos. Somente nos 10 dias que antecederam a operação, foram atendidos mais de 450 usuários por meio de telentrega.
Com a população mais reclusa em casa, o criminoso ficou mais visível na rua, avalia o subcomandante-geral da Brigada Militar (BM), coronel Vanius Cesar Santarosa. Segundo o oficial, o novo cenário tem se refletido em mais prisões e apreensões:
— Nosso efetivo está normalmente na rua, não houve redução. Então, há uma visibilidade maior do criminoso.
A média de confrontos com a polícia — quando há troca de tiros — caiu ligeiramente: de 5 casos por dia no primeiro semestre de 2019 para 4,8 em 2020. Outra peculiaridade da pandemia, na visão do coronel, é que, devido ao fechamento das fronteiras, os criminosos arriscam transportar maiores quantidades de droga de uma vez só:
— Fazem menos viagens e com maior quantidade. Assim, se a BM pega, é em quantidade muito maior. E com uso de inteligência, temos feito apreensões de toneladas. Em cem abordagens, pegávamos 5kg de droga. Agora, em três, às vezes se pega 5 toneladas.
Indicadores da Polícia Civil e Brigada Militar de janeiro a maio mostram que a quantidade de drogas apreendidas em território gaúcho dobrou, se comparados a igual período de 2019. A BM recolheu 581k g de cocaína em 2020, frente a 250kg nos primeiros cinco meses de 2019. No caso da maconha, foram 5,7 toneladas neste ano, ante 2,6 toneladas em 2019, acréscimo de 114%. A Polícia Civil, por sua vez, recolheu 283,9kg de cocaína em 2020, ante 110,9kg em 2019, variação de 156%. A quantidade de maconha foi de 2,8 toneladas de janeiro a maio, frente a 1,4 toneladas em igual período de 2019, acréscimo de 95%.
Cenário semelhante se confirmou nas apreensões da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no primeiro semestre. No caso da PF, foram pegos 1,170 tonelada de cocaína até 6 de junho, ante 459,17kg em 2019, crescimento de 155%. A PRF registrou também disparada na quantidade de apreensões: a cocaína recolhida chegou a 1,6 tonelada, frente a 193 kg em 2019, aumento de 737%.
— Transportar em pequenas quantidades, naquela coisa de formiguinha, não dá certo nesse momento. Está sobrando droga, há volumes maiores armazenados. É preciso pensar com lógica de mercado. Tem estoque para desovar, mas tem menos oportunidade para transportar. Então se corre mais risco, colocando em um carregamento de grande porte. Não teria como a dinâmica do tráfico não ser afetado pela pandemia. Essas mudanças envolvem questões econômicas, de mercado, oferta e procura — explica o perito criminal e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Cássio Thyone Almeida de Rosa.
O delegado regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, Alessandro Maciel Lopes, considera que as organizações criminosas têm facilidade em trocar de rotas e procurar novas formas de distribuição da droga:
— Onde percebe uma dificuldade, já procura outro meio que possa ser mais seguro para dar vazão ao produto. A percepção é de que o tráfico não recuou, mas se adaptou.
Para o cientista social e professor da Feevale Charles Kieling o principal impacto da pandemia no tráfico é a quantidade de drogas e munições represadas fora do país:
— Na medida que passa pela fronteira, essa droga precisa ser pulverizada, colocada no mercado para consumo. Então, de abril para cá entrou muita droga e aumentou a apreensão. Quanto mais entra, mais apreende. Isso impacta também na questão do preço.
O fechamento das fronteiras trouxe dificuldades logísticas de escoamento das drogas. A última portaria em vigor, de 30 de junho, restringe entrada de estrangeiros por qualquer meio e torna livre o tráfego do transporte rodoviário de cargas. Os especialistas apontam que a diminuição dos voos comerciais faz com que as drogas estejam ainda mais presentes nas rodovias. Quanto maior a quantidade de entorpecentes transportados pelas estradas, mais visíveis se tornam às polícias — especialmente durante a pandemia.
Com a redução geral do fluxo de veículos e congestionamentos — e a consequente queda no número de acidentes e ocorrências de trânsito —, sobra mais tempo para o policial rodoviário focar nas atividades de combate ao crime, pontua o chefe da Comunicação Social da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no RS, Felipe Barth, como uma das razões para o expressivo aumento nas apreensões.
O crescimento na apreensão de narcóticos, segundo a PRF, também está relacionada a maior capacitação do policial e no investimento de tecnologia e inteligência para identificar o produto, com buscas mais minuciosas. A criatividade em esconder a droga exige mais expertise da polícia:
— Agora achamos drogas em locais que precisam desmontar o carro, cerrar o caminhão. Locais que antes não tínhamos como encontrar. A droga vem muito bem escondida. Tem caso em que a equipe fica 12 horas desmanchando um caminhão para conseguir achá-la. Cada vez mais nos exige capacidade de desmontagem do veículo e de fazer uma boa entrevista, para desconfiar ou não das pessoas que estão nele.
Incineração
A incineração de drogas apreendidas pelas polícias pode demorar meses — em alguns casos, até anos — pois a destruição do produto depende de autorização judicial. As polícias mantém os entorpecentes bem armazenados e com vigilância 24 horas por dia. Após o aval dos juízes que, em alguns casos vem apenas após o término do processo penal e da definição da sentença, cabe as polícias encontrar empresas dispostas a ceder espaço e equipamentos de forma voluntária para a destruição.