Quando, num ímpeto de alegria, o sobrinho se jogou sobre seu colo e lhe beijou o rosto, Clara (os nomes usados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade) se emocionou. Sentada no sofá, sentiu que o recomeço podia existir. Mesmo em meio às dores do luto. O menino de oito anos se mudou para São Paulo em fevereiro, após presenciar o assassinato dos pais e do irmão em Porto Alegre.
Desde então, a família vive um dia de cada vez, com cautela. Descobre conquistas até em uma receita de pizza, capaz de fazer o pequeno se aconchegar nos braços da “mãe dois”, como a tia passou a ser chamada.
Os avós paternos são os tutores de Pedro e compartilham a guarda com a filha Clara. Diante do desafio de amar, proteger e educar uma criança traumatizada, a administradora de 47 anos, pedagoga por formação, passou a ler mais sobre o tema.
Mãe de um menino de seis anos, recebeu Pedro como mais um filho. Avós e tios precisaram adaptar a vida para acolhê-lo. Espelham-se na forma como a mãe educava o garoto. Apesar da dor, Pedro é amoroso, inteligente e educado. Contam com apoio da psicóloga, que orienta a família sobre como agir.
— É um trauma. Ele é um presente, mas também um desafio. Ri, brinca, joga bola. Mas aquilo está lá no fundo guardado — descreve a tia.
A cidade que o menino conhecia só a passeio se tornou seu lar. Foi preparada uma rotina ativa, com treinos de futebol e aulas de natação — escolhidos a partir do que ele pediu, sem imposições. Pedro frequenta a mesma escola que o primo. Quando começava a se habituar ao dia a dia, a família encarou outro dilema: o distanciamento social decorrente da pandemia do coronavírus. As atividades extras foram suspensas, e o desafio aumentou.
— Quando percebemos que ele está triste, inventamos algo. Pode ser até uma cambalhota — conta.
A festinha do aniversário de nove anos, preparada e com a lista de convidados da escola pronta, teve de ser adiada para quando for possível reunir os amigos. Pedro não fez birra, afinal, “este corona é muito feio”, diz. Apaixonado por futebol, está preocupado com as dores nas pernas no retorno dos treinos. Mas não pretende desistir. Quer ser goleiro.
— Temos de ir reinventando o dia. Não é fácil. Tem de ter uma estrutura psicológica, emocional e espiritual muito forte — diz a tia.
O filho de Clara pedia à mãe um irmão e acabou recebendo um — mais velho. Pedro argumenta que o primo deve obedecê-lo, afinal, tem dois anos a mais. Os garotos dividem o quarto na casa de Clara e no apartamento dos avós paternos.
Aos poucos, aprendem a compartilhar tudo, inclusive a atenção. Brincam, conversam e, por vezes, vestem roupas iguais. Se um entra no carro e esquece o cinto de segurança, é repreendido pelo outro. As brigas pelo controle remoto ou pelos jogos cessam rapidamente quando o celular é retirado.
Na convivência com o avô, com quem é muito apegado, Pedro reproduz as brincadeiras com as quais estava acostumado. Os dois jogam futebol e andam de bicicleta juntos. Curtem um ao outro.
Temos de ir reinventando o dia. Não é fácil. Tem de ter uma estrutura psicológica, emocional e espiritual muito forte.
CLARA
Tia do menino
— Eram coisas que meu irmão fazia com ele. Ele está se comportando com meu pai como se fosse meu irmão. Até pela semelhança na aparência. Os dois são muito próximos — comenta Clara.
Aos poucos, Pedro começou a se soltar e a falar mais sobre os pais e o irmão. Mas a família deixa que aconteça no tempo dele. Sem pressão. Foi assim na Páscoa. Quando os dois meninos começaram a questionar se o coelho apareceria, perceberam que o caminho estava livre. Então receberam presentes e trocaram chocolates um com o outro.
Já o Dia das Mães causou aflição. Sabiam que, antes da tragédia, em Porto Alegre, a data costumava ser marcada por café na cama e flores. Pedro e o irmão ajudavam o pai a preparar tudo. Clara cogitou convidar o sobrinho para plantar uma flor ou árvore, num gesto simbólico. Mas recuou de sugerir a ideia, diante do silêncio dele. Por fim, o dia transcorreu como um domingo igual aos outros, sem menção à data. Respeitam o que ele manifesta. Aguardam agora para saber como será o Dia dos Pais.
A família também encontrou formas de manter o menino mais próximo da rotina gaúcha. Pedro escolheu o que levaria para a nova casa — bicicleta, roller, skate, almofadas, brinquedos, cobertas. Naquele momento não foi possível levar os quatro cães. Depois, desembarcou em São Paulo a cadela Sofia — os outros três irão em breve.
— Quando abriu a porta do carro, ela subiu no colo dele, saiu de pé abraçada nele. Ele com os olhos cheios de lágrimas. Nunca tinha visto um cachorro abraçar um humano daquele jeito. Acho que a chegada dela trouxe pouco mais de calor para ele. Acreditamos que é muito importante manter os laços, as lembranças. Ele já perdeu tanto, no que depender de nós não vai perder mais — descreve Clara.
Mas nem todas as recordações fazem bem. Por vezes, a família capta em gestos ou palavras usados por Pedro o crime que ele presenciou. O menino estava dentro do carro da família quando os pais e o irmão foram executados a tiros do lado de fora, após uma colisão no trânsito. No dia a dia, precisam lidar também com o próprio luto. Evitam demonstrar tristeza perto dele.
— Olho para ele e vejo minha família, meu irmão, minha cunhada, meu sobrinho, que não estão mais aqui. Sinto a dor dele. Queria colocar a mão no peitinho dele e tirar essa dor lá de dentro — resume a tia.
O caminho das conquistas inclui tentativas e tropeços. Clara sabia que Pedro recebia quase diariamente do irmão uma coxinha. Preparou o salgado para agradá-lo, mas o menino não demonstrou empolgação. A tia decidiu não oferecer mais, enquanto ele não pedir. Outra tentativa se deu com a pizza de coração, que sabia que ele adora. A primeira experiência não agradou. Decidiu tentar mais uma vez: usou somente queijo e corações, sem molho. A receita deu certo. O menino devorou metade, correu até a sala e se jogou nos braços dela:
— A melhor “mãe dois” do mundo!
Depois disso, surgiram outras confidências. Por hábito, a família comia macarronada. Um dia, o tio comprou outro, em formato de parafuso. Pedro se lambuzou.
— Eu amo esse macarrão — disse.
Era o mesmo que seu pai preparava. A família aos poucos descobre detalhes e adapta também suas receitas, numa rotina que vai ficando mais espontânea.
— É assim que seguimos, um dia de cada vez — diz a “mãe dois”.
As garantias quando é preciso depor
Considerada marco ao normatizar e organizar o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes, a Lei 13.431, de abril de 2017, teve berço no Rio Grande do Sul. Chamada Lei da Escuta Protegida, foi inspirada no projeto Depoimento Sem Dano, desenvolvido em 2003, na 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre.
Sob iniciativa do então juiz, hoje desembargador, José Antônio Daltoé Cezar, durante o projeto foi aplicada nova técnica, tentando minimizar os traumas. Para isso, crianças e adolescentes que precisavam ser ouvidos em processos passaram a ser levadas para sala especial, lúdica e acolhedora, sob acompanhamento de psicólogo ou assistente social. O depoimento era transmitido por vídeo para a sala de audiências. O projeto pioneiro começou a ser replicado em outras capitais do Brasil.
Quatorze anos depois, tornou-se lei a partir de projeto apresentado pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). Ela regulamenta a escuta especializada (entrevista perante órgão da rede de proteção) e o depoimento especial (à polícia ou judiciário). Para elaborar o texto, foram consultados especialistas, entre eles o desembargador Daltoé Cezar, que hoje também é presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Juventude.
— Em 2003, ninguém debatia esse assunto, nem estudava isso. Quando cheguei em Porto Alegre, estava numa Vara da Infância, aquilo me incomodava muito. Pensava que os depoimentos dessas crianças precisavam ser diferentes. Então, o promotor João Barcelos (hoje desembargador) e eu compramos os equipamentos com nosso dinheiro. Era um gravador cassete e uma mesa de som, muito ruins. Mas já funcionava melhor. A partir de 2004, o Tribunal de Justiça comprou equipamentos de boa qualidade para 10 comarcas no Estado. E começou a mudar. A preocupação é bem maior hoje. Ainda há pontos a melhorar, mas melhorou muito o tratamento da criança como testemunha ou vítima — analisa o desembargador.
Na maioria dos casos, essas crianças viram a mãe ou pai matarem ou sendo mortos. Em situações de violência doméstica, muitas vezes a criança não quer prejudicar o pai. Por isso, é muito importante que seja um depoimento sem dano.
CRISTIANE BUSATTO ZARDO
Juíza
Responsável por coordenar júris em Porto Alegre, a juíza Cristiane Busatto Zardo, na magistratura há 27 anos, afirma que no caso das crianças testemunhas o depoimento é evitado, sempre que possível. Quando é indispensável, atende os protocolos exigidos.
— Na maioria dos casos, essas crianças viram a mãe ou pai matarem ou sendo mortos. Em situações de violência doméstica, muitas vezes a criança não quer prejudicar o pai. Ela se sente responsável por aquilo. Por isso, é muito importante que seja um depoimento sem dano. Há casos em que o tráfico invade a casa e mata a família inteira, mas deixa a criança. Ela já sofreu um impacto muito grande. Ter de lembrar daquilo é um trauma renovado — afirma a magistrada.
Ao longo da investigação, a Polícia Civil também tenta evitar o depoimento da criança testemunha. Quando precisam acontecer, os depoimentos são realizados em salas especiais, com acompanhamento de profissionais treinados, são gravados e realizados preferencialmente apenas uma vez.
— Se temos outras provas, robustas, que nos levam ao esclarecimento da autoria do fato, evitamos ouvir a criança, para preservar a saúde mental dela. Quando o depoimento for imprescindível, será cercado de todas as garantias e cuidados, para evitar sofrimento psicológico dessa criança — afirma o diretor do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis, delegado Thiago Albeche.
Embora a legislação seja conhecida pela escuta protegida, ela vai além disso. A lei prevê que tanto aquela criança que presencia um crime quanto a vítima seja encaminhada à rede de proteção, onde poderá acessar os serviços como tratamento de saúde mental e inclusão em centros onde possa ter atividades extras, no contraturno da escola.
Não é uma pessoa sozinha que vai dar conta. É toda a rede de proteção. Se um dos ingredientes não fizer sua parte a gente acaba perdendo essa criança.
DENISE CASANOVA VILLELA
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público do RS
Isso é considerado, na visão da coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público do RS, promotora Denise Casanova Villela, um divisor de águas na forma de tratamento às crianças testemunhas.
— A família deve manter a criança nesses serviços. Caso isso não aconteça, a rede deve comunicar o Conselho Tutelar. Por vezes, a família se desorganiza e não consegue acompanhar a criança no atendimento psicológico, por exemplo. Nesse caso, a assistência social precisa auxiliar. Não é uma pessoa sozinha que vai dar conta. É toda a rede de proteção. Se um dos integrantes não fizer sua parte a gente acaba perdendo essa criança. Por isso, é importante ter esse fluxo da rede e todos saberem seu papel — explica.
O secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS, Catarina Paladini, reconhece que a rede de proteção vem buscando alternativas para manter o atendimento às crianças e adolescentes. Ela afirma que o período de distanciamento social é um desafio.
— Neste momento de fragilidade, essas crianças e adolescentes precisam de uma escuta que gere proteção, atenção e estabeleça, no momento do atendimento do caso, vínculo de confiança, situação que também necessita ser repensada e reinventada — diz o secretário.