Aos sete anos, Isadora (os nomes usados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade) adormeceu na cama ao lado da mãe, em sua casa na zona leste de Porto Alegre. Quando despertou na manhã seguinte, descobriu que a mulher havia sido assassinada. Pedro, oito anos, viu os pais e o irmão serem mortos a tiros também na capital gaúcha, quando voltavam de uma festa de aniversário. Alice, aos seis, foi esfaqueada pelo padrasto dentro de casa em Viamão, na Região Metropolitana, e se tornou a única sobrevivente da chacina que vitimou seus cinco irmãos, em março de 2004.
GaúchaZH reúne nesta reportagem três histórias de crianças que testemunharam homicídios de pessoas que amavam. Mostra como as famílias lidam com os traumas da violência e encaram o desafio de, em meio ao luto, buscar um recomeço.
Desde os cinco meses, Isadora costumava passar boa parte do dia na companhia dos avós maternos. Brincava na moradia deles, no mesmo pátio. Em agosto do ano passado, a menina acordou e decidiu cobrir a mãe porque o dia estava gelado. Quando tocou seu corpo, percebeu que ela não se movia. Levou a mão perto do nariz e, na sequência, em direção ao peito dela. Na outra casa, os avós ouviram os gritos desesperados e correram para acudi-la.
— Sai daí — orientou o avô, enquanto se aproximava.
— Não, vô. Meu pai matou a mãe e levou a chave! Fechou a porta! — respondeu a menina, aos berros.
Estarrecido, o taxista Carlos, 63 anos, pediu que a neta se afastasse e derrubou a porta. Dentro do imóvel, confirmou o que a pequena havia descrito. O relacionamento de oito anos dos pais de Isadora havia terminado de forma trágica. O casal estava separado há cerca de um mês e a mãe da criança havia obtido medida protetiva contra ele. No mesmo dia em que ela recebeu a ordem judicial, o ex a estrangulou dentro de casa.
Após o crime, os avós da criança abandonaram a residência onde viviam. Alugaram outro imóvel e rumaram para o Extremo Sul. Na nova moradia, assumem o papel de pais, enquanto lidam com o luto.
— Não tínhamos como ficar lá. Não mexemos na casinha dela, ficou tudo como era. Saía e via a casa dela. Vinha toda a lembrança. As pessoas me dizem que devemos esquecer. Mas como? É muito difícil. Dói. Se não fosse ela (a neta), não sei como íamos aguentar — confidencia a avó.
A família buscou apoio psicológico para ajudar a menina a enfrentar o trauma. Contam com o serviço, por meio de uma unidade de saúde próxima de casa, mas o atendimento está suspenso no momento em razão da pandemia do coronavírus. A criança precisou se adaptar à nova escola, onde concluiu o primeiro ano e agora cursa o segundo. Nos primeiros dias de aula, teve episódios de choro.
Ela viveu um fato traumático. Vai lembrar disso, pensar. Tem de ter direito de viver o luto. Mesmo que ela se entristeça e não queira mais ir à escola, cabe à família procurar os professores, explicar, mas ela deve ir. Lá, gira a energia da vida infantil. A escola deve ser o sopro de vida, onde ela é acolhida, respeitando o momento, mas seguindo em frente.
ELIANE SOARES
Especialista em violência doméstica pela Universidade de São Paulo (USP)
A professora, informada do passado da aluna, tem auxiliado os avós a monitorar o comportamento dela. Maria, 60 anos, diz que, nesses nove meses, a neta evita falar sobre o crime, mas demonstra medo de que algo aconteça com os avós.
— Ela ficou com isso na cabeça. Com esse medo. Não fala. Ficou bem fechada. A psicóloga diz que lá por uns 12 anos talvez comece a se abrir. Mas da mãe ela fala. Guardou parte das roupas. Quer usá-las, quando estiver maior. Ela até que tem reagido bem — conforta-se Maria.
Em casa, Isadora é agitada, ocupa o dia com corridas de um lado para o outro com a cachorra Belinha, a pinscher também inquieta que ganhou dos tios, os desenhos com os quais adora preencher as folhas dos cadernos e as receitas de bolo, para as quais pede o auxílio da avó. À noite, chega à cama exausta.
A relação com o luto
E, na maior parte dos dias, voltou a dormir tranquila. Há algumas semanas, no entanto, Maria acordou com o choro da neta e perguntou o que havia acontecido.
— Minha mãe estava aqui, me deu um abraço e saiu — balbuciou.
— Ela pensou que era verdade. Como acordou e viu que não era, começou a chorar — explica a avó.
Maria contou à neta uma história lúdica sobre a partida da mãe. Disse que ela se transformou em uma estrela. Por vezes, Isadora mira o céu e comenta que ela está mais brilhosa. A avó responde que, lá do alto, a mãe segue vigiando como ela se comporta aqui embaixo.
— Vó, quando vou à escola, não tem estrela no céu. De dia, ela também vigia o que faço? — intriga-se.
— Ela é esperta. Me deu uma volta. Mas essa é a forma que encontramos de ir levando — descreve Maria.
Respeitar o luto e, ao mesmo tempo, demonstrar que a criança não está sozinha é uma das recomendações da psicóloga Eliane Soares às famílias. Especialista em violência doméstica pela Universidade de São Paulo (USP), ela defende a importância de dar espaço para a fala, o choro, a tristeza, mas também auxiliar na compreensão de que a perda é parte da vida e que existem motivos para seguir em frente.
— Ela viveu um fato traumático. Vai lembrar disso, pensar. Tem de ter direito de viver o luto. Mas é essencial ter alguém que vai dar atenção a isso. Dizer: “Estou aqui, tenho consciência de que isto é sério, isso dói. Estou junto contigo nesta dor”. Mas não se afundar neste momento. Um bom passo é ajudá-la a enxergar o que tem. Mostrar que há outras pessoas cuidando dela, há a escola, os amigos e as coisas de que ela gosta. Mesmo que ela se entristeça e não queira mais ir à escola, cabe à família procurar os professores, explicar, mas ela deve ir. Lá, gira a energia da vida infantil. A escola deve ser o sopro de vida, onde ela é acolhida, respeitando o momento, mas seguindo em frente — diz Eliane.
A família planeja que Isadora passe a frequentar um centro de apoio à infância e à juventude próximo de casa. O espaço atende crianças entre seis e 14 anos, com oficinas como canto, dança, leitura, percussão e karatê. A escolha, segundo a psicóloga, deve ir ao encontro dos desejos da criança. Enquanto não explora novas habilidades, uma das paixões de Isadora é cavalgar — descoberta que só foi possível por meio de uma iniciativa pioneira no Rio Grande do Sul.
A menina foi uma das selecionadas para integrar um projeto que utiliza o contato com cavalos para facilitar a coleta do depoimento das crianças que testemunharam crimes. Ao mesmo tempo, a iniciativa ajuda a superar o trauma. Os animais atuam como facilitadores, pois permitem desenvolver as emoções dos pequenos, que muitas vezes perderam a confiança nas pessoas. A técnica costuma ser aplicada nos casos em que a criança não consegue falar sobre o que aconteceu, mas seu depoimento é considerado essencial para a investigação.
A iniciativa foi desenvolvida em parceria entre o Instituto-Geral de Perícias (IGP) e a Brigada Militar. Na sede do 4º Regimento de Polícia Montada, Isadora aprendeu a montar e cuidar da égua Orquestra. O projeto se tornou uma das atividades preferidas dela, mas também está suspenso temporariamente pela pandemia de coronavírus.
— Ela adora os cavalos. Faz muito bem para ela. Está ansiosa para voltar — conta a avó.
Uma das criadoras do projeto que Isadora frequenta com os cavalos, a psiquiatra e coordenadora de perícias do Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil, Angelita Rios, explica que a violência na infância pode desencadear transtornos como exposição a riscos, depressão, fobias, agressividade, ansiedade, automutilação e até mesmo suicídio —isso pode ocorrer mesmo anos depois. O impacto dependerá de como ela conseguirá lidar com a situação e o suporte que vai receber.
— Essa menina realmente precisa do olhar do Estado porque duplamente perdeu a mãe, pelo óbito, e o pai, por ser o autor. E o sofrimento dessas crianças nem sempre é visto. Todo mundo sai de um trauma desses com sequelas. Mas, se ela tiver a chance de se reconstruir, de saber que aquilo foi uma violência, mas que tem todo o futuro na frente, vai se sair melhor e as cicatrizes serão menores — afirma.
É com o intuito de auxiliar essas crianças e adolescentes a lidar com os traumas que uma entidade de Cachoeirinha, na Região Metropolitana, também está colocando um projeto em prática. A Associação de Justiça e Atendimento para Mulheres (Ajam) está formando grupos de apoio e oferecendo terapia individual a filhos de vítimas agredidas ou assassinadas.
— Muitas vezes, esse trauma acontece dentro de casa, onde a criança deveria estar segura. Elas ficam muito fragilizadas. A intenção com o grupo é de que ela possa perceber que não está passando por isso sozinha. Entender que ela tem a dor dela, o tempo de luto, mas que precisa se fortalecer. Queremos motivar outras instituições — projeta a advogada Sueme Pompeo de Mattos, presidente da Ajam, com seis anos de experiência como conselheira tutelar.