A primeira festa de aniversário, o jantar em família, a brincadeira no pátio de casa, o sono no beliche, a partida de futebol. Os minutos que antecederam a tragédia guardam suas singularidades, mas o desfecho para 21 crianças da Capital foi o mesmo desde 2012: todas estão mortas.
O mapeamento foi realizado com base no levantamento realizado pela editoria de Segurança dos jornais Diário Gaúcho e Zero Hora. A reportagem conta abaixo três histórias dessas vítimas que tiveram a vida interrompida ainda na infância.
Laura, moradora do Vila Nova, dormiu e não acordou mais. Morreu atingida por um tiro de fuzil enquanto descansava no quarto com os irmãos. Matheus foi vítima do própria pai, no bairro Tristeza. E Surianny teve o corpo escondido dentro de um sofá depois de ser estuprada e morta.
Laura, sete anos, um tiro de fuzil pela janela
O tiro de fuzil que atravessou a janela do segundo andar de uma casa pobre no bairro Vila Nova partiu ao meio a vida de uma mãe de cinco filhos. O disparo acertou a cabeça da pequena Laura Machado Machado, aos sete anos, em abril de 2015.
A menina dormia no alto de um beliche, no mesmo quarto dos irmãos. A bala passou pela janela onde ela estava encostada, ricocheteou na parede e cortou a nuca do irmão, de 11 anos, cicatriz que o adolescente carrega até hoje. Na mãe, as cicatrizes não são visíveis, mas estão ali. A dona de casa guarda as roupas, a escova de dentes e até as raspas dos lápis que a menina apontou na segunda série da escola.
— Foi um único disparo e estragou toda minha vida.
A mãe dormia na sala quando acordou com os tiros. Em seguida, os gritos do filho mais velho. A irmã tinha sido baleada. Laura foi socorrida, mas não havia mais tempo. Até hoje, a dona de casa tenta entender como a bala acertou os dois irmãos. No mesmo dia, sepultou Laura no Cemitério da Santa Casa. Todos os aniversários, a mãe leva os quatro filhos até a sepultura.
— Nunca deixei de falar nela. Eles sabem o que aconteceu. Sempre vão ter medo.
Só neste ano, a mãe conseguiu desapegar das roupas de Laura. Separou um vestido e um macacão que ela mais gostava e doou as outras. Vaidosa, a menina adorava ter as unhas pintadas, penteava os cabelos e cuidava dos materiais com carinho.
— Do jeito que ela deixou, a mochila ficou. Fiquei com um pé de chinelo, o outro perdemos naquela noite, e duas pecinhas de roupa. É um sentimento de descaso, como se fosse mais uma. Hoje, eu mato no peito e a vida segue.
Como está o caso — O disparo que atingiu Laura era de fuzil 5.56, arma de uso restrito. Em maio deste ano, 22 foram denunciados pelo Ministério Público por envolvimento no tiroteio que resultou na morte de Laura. Desses, dois homens respondem pelo homicídio da criança, por motivo torpe, que seria a disputa pelo tráfico, e. pela tentativa de homicídio contra o irmão da menina.
Matheus, cinco anos, morto pelo pai
Entre as crianças mortas, nove foram vítimas do pai ou do padrasto. Em cinco desses casos, a mãe também foi assassinada. Uma realidade que atingiu uma família no bairro Tristeza, na Zona Sul, em julho de 2012.
Quando o genro foi resgatado com vida do Guaíba, onde tinha se jogado da ponte, João de Carvalho Calixto, 74 anos, temeu pelo pior. A casa da filha Márcia Cambraia Calixto Carnetti, 39 anos, estava fechada quando ele chegou acompanhado do outro filho e de policiais civis. Dentro da moradia, agentes depararam com uma cena que fez uma das policiais gritar: a enfermeira e o filho, Matheus, cinco anos, mortos a facadas.
— Quando ouvi o grito, senti que era uma tragédia muito grande. Como alguém pode matar o próprio filho? O garotinho adorava ele — lamenta o idoso, que hoje vive na mesma casa da filha.
O bioquímico Ênio Luiz Carnetti teria cometido o crime por ciúme. Ele suspeitava que estivesse sendo traído. Os dois eram casados havia 15 anos. A faca usada no duplo homicídio tinha sido um presente de Calixto.
— Conseguiu esconder essa face de todo mundo. A minha filha não esperava isso dele. Nunca imaginei que isso podia acontecer com a nossa família. O ciúme doentio dele foi fatal — diz Calixto.
Depois de perder Márcia e o neto, o idoso começou a estudar Direito. Em junho do ano passado, acompanhou o julgamento que condenou Carnetti pelas mortes. Mãe e filho foram sepultados juntos.
— O Matheus estaria hoje com 12 anos. Podia estar comigo ou com meu filho. Foi um horror. Afetou a família toda. Estamos superando, seguindo, mas é uma tragédia que vamos carregar para sempre — relata.
Como está o caso — Carnetti foi condenado a 54 anos e oito meses de prisão pelas mortes da mulher e do filho. Segue preso.
Surianny, cinco anos, morta após estupro
Para a criançada, o interior de um sofá de três lugares era o esconderijo perfeito na hora do pega-pega. E também para fugir de uma represália dos pais. Foi entre as madeiras e o estofado do móvel que Surianny dos Santos Silveira, cinco anos, foi encontrada morta depois de ter sido estuprada pelo padrasto e por um irmão de criação dele.
Três anos se passaram, mas o caso ainda é lembrança viva para uma tia da criança, de 37 anos. Foi ela que encontrou a menina sem vida dentro do móvel, após ter desaparecido de uma festa na casa da família no bairro Lomba do Pinheiro — o local tem registro de três vítimas, o maior da Capital — , Zona Leste.
— Primeiro, levantei um sofá de dois lugares e não tinha nada. Depois, quando estava erguendo o outro caiu um pouco de terra e apareceu uma ponta de um cobertor. E o sofá voltou, estranhei porque era um sofá bem leve. Tive uma sensação ruim e medo e liguei para meu marido. Quando desliguei o telefone e olhei para trás, vi a mão dela. Saí dali correndo — relata.
O corpo da menina foi encontrado no meio da madrugada, cinco horas após o desaparecimento. A família acredita que o padrasto e o amigo se valeram da ausência da mãe, que estava viajando, para cometer o crime. Aproveitaram também do abafamento gerado pela chuva, silenciando possíveis gritos da criança.
A morte precoce gerou avalanche de impactos na família. A mãe da criança voltou a consumir drogas e, segundo a irmã, "desistiu da vida e perdeu a vontade de tudo". Ela teve uma outra filha depois da morte de Surianny, mas devido à dependência química, perdeu a guarda.
Fora isso, parte da família se mudou da cidade e foi morar no litoral de Santa Catarina. Entre elas, está a avó, que ficou com a guarda dos irmãos de Surianny e ainda com a filha do padrasto da menina. Apenas uma tia permaneceu na capital gaúcha. Na cabeceira da cama de uma de suas filhas, uma fotografia recorda a menina, como memória póstuma: "seu sorriso, sua alegria, inesquecível, amada".
Como está o caso — No começo deste ano, Charles Teixeira de Castro, padrasto da vítima, foi sentenciado a 61 anos e Jeferson Machado da Silva a 61 anos e 9 meses. Eles estão presos.