O disparo que no último domingo silenciou Alice Beatriz Rodrigues, de apenas um ano, evidencia a violência que tirou a vida de 21 crianças em Porto Alegre em seis anos. A primeira festa de aniversário, o jantar em família, a brincadeira no pátio de casa, o sono no beliche, a partida de futebol. Os minutos que antecederam a tragédia guardam singularidades, mas o desfecho é o mesmo: todas vítimas estão mortas.
Seis bairros da Zona Norte, onde Alice foi assassinada, concentram a metade dos homicídios de crianças na Capital durante o período: 11 registros — o levantamento é editoria de Segurança dos jornais Diário Gaúcho e Zero Hora. A menina foi alvejada após sair do salão de festa com os pais. O carro da família foi perseguido por outros dois veículos onde estavam os atiradores. Na fuga, o motorista perdeu o controle e criminosos dispararam contra a família. Para a polícia, o alvo era o pai da menina, Douglas Araújo da Silva, 29 anos, que tinha envolvimento com o tráfico de drogas.
—Isso revela a face mais cruel das facções criminosas. Nada justifica as mortes dessas crianças. Em completo menosprezo pelo ser humano, seja na disputa de território ou em razão de dívida, acabam atingindo pessoas inocentes — analisa o promotor Luciano Vaccaro, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública do Ministério Público.
Alice foi encontrada sem vida no colo da mãe, ainda vestida de Minnie, tema da festa. O crime aconteceu no Rubem Berta, mesmo bairro em que um garoto de 12 anos foi atingido a tiros enquanto brincava na rua, em janeiro de 2016. Lucas Longo Motta, que sonhava em ser patrão de CTG, não teve tempo de escapar dos criminosos que tentavam acertar outro morador. Quatro meses depois, no bairro Farrapos, também na Zona Norte, Kauã Tavares Nieto, 10 anos, jogava futebol em um campinho quando foi baleado.
A morte de Alice reforçou novamente nos moradores da região a sensação de medo. A família da menina residia no bairro Jardim Leopoldina, onde o fato de até a vida inocente não ter sido poupada gerou revolta.
— Estamos pensando em contratar uma equipe de segurança para vigiar a rua — desabafa um morador atrás de grades reforçadas com cerca elétrica.
Silêncio e medo dificultam apurações
O medo faz com que os familiares de Alice tenham receio inclusive de serem identificados, realidade que afeta outras famílias que perderam suas crianças. Sem condições de abandonar o local onde tiveram os filhos assassinados, pais optam pelo silêncio por medo. Algo que torna a elucidação dos crimes mais complexa.
Esses criminosos não poupam ninguém. Não tem escrúpulo. Atiram sem nem ver quem está na frente.
MORADORA DA ZONA NORTE
— Causa dificuldade para a investigação e para o Ministério Público fazer seu trabalho, que é obter uma condenação — afirma Vaccaro.
Alice ainda não sabia caminhar e balbuciava as primeiras palavras. "Bobó" para avó, "Di" para dinda. Dizia cada palavra sorrindo, seguido de um afago da família. Mãe e avó se dividiam na tarefa de cuidar da criança, em uma casa simples, numa rua sem saída. O pátio, nos fundos da residência, era seu lugar favorito. Passava o dia acompanhada do primo, de cinco anos.
— Era agitada, brincalhona e muito esperta. Adorava dançar funk com a mãe. Toda família amava essa criança — conta um familiar.
"A ganância gera as mortes", avalia juiz
Das 21 crianças assassinadas desde 2012, 10 foram vítimas de atiradores. Quatro delas, moradoras de áreas conflagradas pelo tráfico de drogas, foram alvo de "balas perdidas". Na disputa entre facções rivais, as vítimas ficam em meio ao fogo cruzado. É consenso entre Judiciário, Ministério Público e Polícia Civil que a ordem para a maior parte dessas execuções, quando vinculadas ao tráfico, partem de dentro das cadeias.
— Vão para matar e quem está na volta corre risco grande. Infelizmente, são crianças que estavam junto ou perto dos alvos das execuções. É uma rivalidade sangrenta — afirma o diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, Paulo Grillo.
Para o delegado, a prevalência de assassinatos de crianças na Zona Norte evidencia a disputa entre traficantes, que se arrasta por anos. A região concentra mais de um quarto dos homicídios (26%) ocorridos na Capital.
Há um tempo nessa guerra havia um código de conduta de que as famílias ficariam fora. Esse código mudou. Não interessa se é criança, idoso. Eles matam igual.
FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA
Juiz
— É uma região populosa e com condições sociais deficientes. Modificar essa realidade depende de mudanças nas políticas públicas, no sistema penitenciário que forma essas facções, na política pública de drogas, no controle do armamento. Além da prevenção primária na juventude, que é tirar esse jovem da mão do traficante, oferecer condições de educação, de trabalho, de moradia. O traficante vai ali e oferece um tênis e o guri está trabalhando para o tráfico — avalia o delegado.
Para Felipe Keunecke de Oliveira, magistrado que atua em júris na Capital, o recrudescimento da violência está atrelado ao aumento do consumo de drogas, o que, em seu entendimento, acirra a disputa por territórios ao inflar o lucro das facções.
— A ganância gera todas as mortes. E essa guerra do tráfico tem reflexos em todos os tipos de homicídios, inclusive de crianças. A droga adquirida pelo consumidor recreativo é o capital de giro da violência. Estou falando do consumidor recreativo, que reclama da violência na cidade, dos assaltos e patrocina essa guerra. O sangue dessas crianças vem daí. É preciso dificultar a vida do consumidor, multar, para diminuir o capital de giro —avalia.