Alice (os nomes usados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade) deu as suas bonecas os nomes dos cinco irmãos. Foi com elas que por anos desabafou sobre a tragédia que vivenciou dentro de casa. Em 11 de março de 2004, na periferia de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre, o padrasto da menina atacou os seis enteados a golpes de faca. Com ferimentos no peito, nas costas, nos braços e no rosto, a garota, então com seis anos, tornou-se a única sobrevivente da chacina.
A mãe era catadora, acordava de madrugada para recolher papéis nas ruas. Retornava para casa de manhã cedo, para acordar os filhos. O crime foi cometido pelo companheiro, com quem ela vivia há oito meses, em uma relação conturbada por brigas e ciúme. Enquanto ela estava trabalhando, o padrasto usou uma faca para matar as três meninas e os dois meninos, com idades entre dois e nove anos. Somente Alice sobreviveu.
Hoje com 23 anos, mãe de quatro filhos, diz que ainda consegue ver tudo na sua frente, como se estivesse acontecendo. Apesar de sobreviver às facadas, precisou encontrar forças para se manter viva nos anos seguintes. Lutou contra os traumas, especialmente na adolescência, precisou cuidar da mãe, abalada pela perda dos filhos, passou por tratamento psicológico, contou com apoio de professores e frequentou um centro social, no turno inverso ao da escola.
— Me tratei por muito tempo. Eu começava a ver coisas que não existiam. Chorava muito. Não posso dizer que superei 100%, mas ajudou muito. Todo mundo que passou por isso, nunca vai esquecer. Às vezes, paraliso. Ou vou atravessar a rua e saio andando, do nada, como se minha cabeça ficasse vazia. Já até me acostumei com isso. Tem de ir levando a vida, não adianta – conforma-se a jovem.
Atualmente, diz que evita ter facas por perto e presenciar cenas violentas, mesmo na televisão. Busca apoio nas conversas com o marido. Com ele, consegue recordar sobre como eram os irmãos. Descreve os cabelos loirinhos das irmãs. Quando o filho de seis anos questiona sobre as cicatrizes que ela tem no corpo, Alice conta que se machucou brincando. Até hoje, evita falar com a mãe sobre o que aconteceu. Teme que ela tenha alguma recaída.
A insistência machuca. Tudo tem de ter seu tempo. É bom falar quando está na tua hora. É preciso evitar ao máximo fazer essa criança sofrer mais ainda do que já sofreu.
ALICE
Sobrevivente de chacina
Com a experiência de quem viveu isso na pele, defende que se respeite o silêncio, caso a criança não queira falar sobre o trauma, e que a família se empenhe para que a testemunha de um crime não fique exposta a novas violências, pois já está fragilizada.
— A insistência machuca. Tudo tem de ter seu tempo. É bom falar quando está na tua hora. É preciso evitar ao máximo fazer essa criança sofrer mais ainda do que já sofreu. Deixar que brinque bastante, para ter outras lembranças. Afastar o que é ruim de perto, para que ela possa reiniciar — aconselha.
A jovem acredita que as atividades que frequentou em um centro social na Zona Norte foram importantes no processo de seguir em frente. No espaço, tinha aulas de teatro, dança, música e esportes. Na escola, também encontrou apoio dos professores.
— Quando adolescente, eu desabafava com a professora de dança. Isso me ajudava — recorda.
Alice conta que ainda na adolescência passou a se questionar sobre porque aquilo havia acontecido e, sem encontrar respostas, revoltava-se e chutava as paredes, em desespero. Por vezes, chorava tanto que chegava a desmaiar. Chegou a pensar mais de uma vez em dar fim à própria vida. Além da perda dos irmãos, precisou ajudar a cuidar da mãe, que passou a ter problemas de saúde. Sofreu três acidentes vasculares cerebrais e duas paradas cardíacas. A filha associa a doença ao trauma sofrido.
Na adolescência, também tinha sonhos. Queria ser pediatra. Mas acabou concluindo somente o Ensino Fundamental. Passou a trabalhar como operadora de caixa de supermercado, também fez panfletagem na rua e foi atendente de restaurante. Aos 15 anos, engravidou do primeiro filho. Hoje, é dona de casa e cuida das quatro crianças na zona norte da Capital. Tem um menino de seis anos, uma menina de três, outra de dois anos e um bebê de dois meses.
Alice acredita que o trauma impacta na forma como ela age com os filhos. Conta que não deixa as crianças sozinhas, pois tem medo de que algo de ruim lhes aconteça. Os planos da jovem incluem a família: casar e comemorar os aniversários de 15 anos das duas gurias e de 18 anos dos filhos. Algo que nunca pôde fazer com seus irmãos.
— Tenho muito medo. Tudo que passei... Tento evitar que meus filhos vivam algo parecido. Não quero que isso afete a vida deles. Meu marido me escuta, é compreensivo. Quando nos conhecemos, tive mais força para viver. Hoje posso dizer que me sinto uma pessoa feliz — diz Alice.
Combate à violência
Fortalecer os vínculos entre as crianças, adolescentes e seus familiares, e também com a comunidade onde vivem, reforçando a responsabilidade que eles têm na sua proteção e defesa dos direitos, é uma das ações defendidas pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) como forma de enfrentamento à violência.
Isso porque, segundo o órgão, muitas vítimas de homicídios passaram ao longo da vida, inclusive na infância, por uma série de privação de direitos, que culminaram na sua morte. Isso inclui presenciar violências dentro de casa ou no entorno dela.
— Muitas crianças que acabam sendo vítimas de homicídios foram testemunhas de violências. E elas também são vítimas da violência psicológica porque estão expostas a crimes. Acima de tudo, precisamos de lares seguros. De pais que protejam. Mas essa não é a realidade para muitos. Crianças que crescem em lares violentos acabam sendo mais propensas a serem afetadas pela violência como vítimas ou perpetradores — alerta a especialista em proteção da criança do Unicef, Luiza Fachin Teixeira.
Para agir de forma preventiva, é necessário entender os fatores que integram esta realidade e a vulnerabilidade em que as famílias se encontram, não normalizar a violência e qualificar a rede de apoio. É preciso que essa criança testemunha ou vítima tenha atendimento imediato, com profissionais qualificados.
Acima de tudo, precisamos de lares seguros. De pais que protejam. Mas essa não é a realidade para muitos.
LUIZA FACHIN TEIXEIRA
Especialista em proteção da criança do Unicef
No caso das testemunhas há outro fator que demanda atenção, já que não necessariamente elas apresentam sintomas ou sinais externos facilmente identificados. Professores, assistentes sociais e agentes de saúde precisam ter olhar aguçado para reconhecer aquelas que estão expostas à violência.
Algumas iniciativas fomentadas pelo Unicef incluem a aplicação de métodos para a solução de conflitos, além do fomento à cultura da paz, do diálogo e da autonomia dessas comunidades. Para que elas sejam capazes de identificar os problemas e buscar soluções. Isso deve incluir crianças e adolescentes. Devem ser ouvidos, para ajudar a construir, enquanto comunidade, as respostas à violência.
— Elas têm direito de crescer em um ambiente livre de violência, seja em casa ou na comunidade — defende a especialista.
O colombiano Juan Mario Fandino Marino, doutor em Sociologia pela Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, concorda que o combate à violência também passa por preparo, inclusive psicológico, da sociedade para lidar com situações de conflito e tensão.
— Quando uma criança experimenta a situação de presenciar um homicídio ou quando tentam tirar a vida dela, é uma das piores experiências possíveis. A pessoa fica insegura, perde a confiança que as crianças têm nos pais e na sociedade como um todo. Os pais representam a sociedade para ela. Ela foi vítima de um fato que aconteceu e, na cabeça dela, pode acontecer a qualquer momento. Temos uma pessoa, de certa forma, marginalizada pelo trauma e pelo medo — analisa o professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que vive há mais de quatro décadas em Porto Alegre.
A violência doméstica é outro contexto frequente por trás dos casos nos quais as crianças acabam sendo testemunhas de crimes, segundo os especialistas. Isso porque as violações contra as mulheres e contra crianças e adolescentes envolvem contextos semelhantes. Dentro de casa, os filhos são vítimas e também testemunham crimes contra os familiares. Há uma série de fatores por trás disso, vinculadas às culturas patriarcais, como o autor não aceitar o fim do relacionamento, pela questão da posse, de entender que a mulher é dele e não será de mais ninguém, ou o consumo de álcool e de substâncias ilícitas.
— O feminicídio é a exacerbação de uma violência que a mulher vem sofrendo há algum tempo — resume Fernanda Vasconcellos, professora do Departamento de Sociologia da UFRGS e pesquisadora de temas como segurança pública e violência contra a mulher.