A maior parte dos casos de violência contra crianças e adolescentes, segundo o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, acontece dentro de casa. E é fora dela que muitas vezes a vítima expressa sinais que permitem identificar o abuso. Esse cenário alerta os envolvidos na proteção da infância para a potencialização do risco de aumento desse tipo de crime durante o distanciamento social implementado para tentar conter a propagação do coronavírus.
É no ambiente escolar que grande parcela das vítimas de abuso infantil manifesta direta ou indiretamente os sinais da violência. São os educadores que escutam relatos ou identificam marcas no corpo e também alterações de comportamento. No entanto, com o fechamento temporário das escolas, os cuidados precisam ser redobrados pelos responsáveis e por outras pessoas que mantiverem contato com a criança. Vizinhos e parentes precisam ficar em alerta e denunciar (confira telefones em lista abaixo).
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público, a promotora de Justiça Denise Casanova Villela manifesta preocupação com o fato de que as crianças estarão afastadas dos lugares de proteção, como as unidades de ensino, e com acesso limitado à rede de saúde e assistência social:
— Com esse isolamento social, a criança vai ficar dentro de casa, justamente onde tem sofrido, ao menos no Brasil, a maior parte das agressões. Mas isso vai acontecer no mundo inteiro. Não só aqui. Especialmente com fechamento de escolas e creches. A escola é o local onde na maioria das vezes elas contam o que está acontecendo.
É o mesmo que acontece no retorno das férias, por exemplo, ou em feriados longos. Acreditamos que esses casos estão reprimidos no momento de distanciamento social. É algo que tem nos preocupado bastante.
ANGELITA RIOS
Médica perita
Quase 70% dos atendimentos realizados pelo Centro de Referência no Atendimento à Infância e Juventude (Crai) — mantido pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP), pela Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e pelo Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, onde funciona — envolvem violência intrafamiliar, ou seja, o suspeito do abuso é parente da criança ou alguém próximo dela. A coordenadora de perícias do Crai Angelita Maria Ferreira Machado Rios acredita que no fim do período de distanciamento mais casos passarão a ser relatados.
— É o mesmo que acontece no retorno das férias, por exemplo, ou em feriados longos. Acreditamos que esses casos estão reprimidos no momento de distanciamento social. É algo que tem nos preocupado bastante. Quando voltarem para seus lugares seguros, essas crianças podem revelar esses fatos — analisa a médica perita.
Os dados de denúncias de violência contra criança e adolescente no Rio Grande do Sul, recebidas por meio do Disque 100 corroboram para a análise realizada pelas especialistas. Dos casos comunicados em 2018 — dados do último balanço anual completo divulgado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — 80% aconteceram dentro de casa. Foram 2.772 casos na residência da vítima ou do suspeito, de um total 3.431 registros. Dos 6.341 tipos de violações descobertas foram 1.306 casos de violência física, 1.551 de violência psicológica e 764 de violência sexual. Também foram 2.230 registros de negligência, além de outros crimes.
Internet
A Polícia Civil do RS não constatou até o momento aumento de registros de crimes desse tipo, mas isso não necessariamente reflete o número de casos, já que o distanciamento pode postergar a identificação dos abusos. Uma das preocupações do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis vai além do possível contato com agressores dentro de casa. Isso porque as crianças e adolescentes também podem ser vítimas por meio da internet.
A rede é um dos meios usados por abusadores para cometer assédios, encaminhar material pornográfico ou obter fotos íntimas das vítimas. O diretor do departamento, delegado Thiago Albeche, alerta que o fato de as pessoas estarem mais tempo em casa pode gerar ambiente propício para o assédio.
Tem de haver atenção redobrada por parte dos pais ou responsáveis todo esse tempo que eles têm ficado em casa, utilizando a internet. É preciso procurar monitorar o que acessam. São crimes que acontecem às escondidas
THIAGO ALBECHE
Delegado de Polícia
— Quanto mais distanciadas socialmente das outras pessoas as crianças e adolescentes estiverem, mais próximas tendem a ficar por meio de redes sociais. E as redes são cada vez mais utilizadas para a prática de delitos. Tem de haver atenção redobrada por parte dos pais ou responsáveis todo esse tempo que eles têm ficado em casa, utilizando a internet. É preciso procurar monitorar o que acessam. São crimes que acontecem às escondidas — enfatiza.
Para auxiliar jovens que possam estar passando por esse tipo de situação na internet, o Ministério Público do RS lançou em 2017 a campanha "Quando uma imagem vira pesadelo" e a ferramenta "Fale com a Manú". Por meio do Facebook, Manú - personagem criada pela inteligência artificial - conversa com o adolescente e dá dicas de como ele deve agir. Orienta, por exemplo, a conversar com algum adulto, alerta para a possibilidade de a vítima estar em contato com um perfil falso e sobre o risco de enviar imagens íntimas. Para entrar em contato, basta usar o bate-papo da página no Facebook, que pode ser acessado a partir deste link.
Outras violências
Outros fatores também preocupam as organizações pelo risco de aumento de violências como maus-tratos e até exploração sexual. Um deles é a instabilidade econômica, que pode gerar maior estresse e descontrole emocional, resultando em atos de violência, como em outros casos levar à exploração sexual de menores, como forma de obter renda.
— É possível que o sexo seja utilizado como moeda de troca até para fins alimentares. Também pode acontecer aumento do estresse psicológico dos membros da família. É possível que esse aspecto mental também se agrave — afirma a promotora Denise.
Atenta a essa situação, a Organização das Nações Unidas (ONU) vem se manifestando sobre as consequências que o distanciamento social pode ter na violência infantil. Foram listados em documento pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) os potenciais riscos para as crianças nesse período, como aumento da negligência e dos diferentes tipos de violência. Nele, a agência da ONU alerta para a necessidade do treinamento das equipes de saúde, educação e serviço social, para identificar os casos de violação dos direitos, e saber fazer os encaminhamentos. Também sugere que as famílias mais carentes recebam assistência, como forma de complementação da renda.
Para além das iniciativas governamentais, os envolvidos na rede de proteção às crianças e adolescentes reforçam a necessidade das comunidades também assumirem esse papel de fiscalização. Para isso, é preciso estar atento ao que acontece nas proximidades e casos suspeitos devem ser denunciados, para que possam ser apurados pelas autoridades.
— Para a criança, que está convivendo 24 horas por dia com o agressor, é muito difícil romper com isso e falar sobre. Até porque não se sente segura. Quem está próximo precisa comunicar o caso. Qualquer um pode fazer a denúncia. Cabe aos órgãos apurarem — reforça a promotora.
COMPORTAMENTO
Uma das principais orientações para quem está perto da criança é ficar atento ao comportamento dela. Confira algumas possíveis alterações:
- O isolamento da criança deve ser fator de preocupação. O movimento natural nesse período é ela ficar mais agitada, feliz, e querer aproveitar ao máximo o tempo com a família.
- Crianças que estão começando a andar ou falar podem apresentar retrocesso nessa etapa quando são vítimas de algum tipo de violência.
- Mudanças de humor, como irritabilidade, agressividade, choro aparentemente sem motivo ou mesmo a utilização de gestos sexualizados podem indicar que ela está sendo alvo de algum tipo de abuso.
- Outros quadros que precisam ser acompanhados são os depressivos e de ansiedade. É também necessário estar atento aos sintomas destrutivos, como automutilação e pensamentos suicidas. Isso pode se acentuar especialmente entre os adolescentes nesse momento, onde eles não têm acesso à escuta.
COMO DENUNCIAR
- Brigada Militar - pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil - Basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. O Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Disque 100 - recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o país
- Conselho Tutelar - as denúncias continuam sendo verificadas. Em Porto Alegre, as 10 microrregiões atendem das 8h às 18h. É possível consultar o endereço e telefone de cada uma nesse link. Entre 18h e 8h, o atendimento é realizado no plantão centralizado (Rua Giordano Bruno, 335). Da mesma forma, aos sábados e domingos, o serviço atende das 8h às 20h e das 20h às 8h, também no plantão centralizado. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020